Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Volume 8 - David Copperfield - Charles Dickens

Quando li David Copperfield pela primeira vez, eu ainda não sabia por que motivo o sobrenome "Peggotty" às vezes era grafado como "Peggotties", e tinha uma ponta de dúvida sobre aqueles serem o mesmo sobrenome ou não. Eu não sabia, naquela época, sobre a formação do plural em inglês, e tampouco que esta regra se aplicava aos sobrenomes. Era então a época que ia do final do primário aos primeiros anos do ginásio (nomes que hoje já não são usados pelo sistema de ensino brasileiro), e eu somente começava a trilhar o caminho do estudo da língua e da cultura inglesa e norte-americana, que me trouxeram até aqui.

Do final dos anos 1980 para cá, já li o romance algumas vezes, das quais umas foram a partir do original em inglês ou traduzido, e outras através deste volume recontado por Oswaldo Waddington, que a coleção Clássicos da Literatura Juvenil publicou como oitavo volume da série, em março de 1972. Ainda que no processo de adaptação muitas de suas 721 páginas originais tenham sido sacrificadas em favor de uma narrativa um tanto quanto menos densa de 239 páginas, das quais 17 são belas ilustrações desenhadas a nanquim, o oitavo livro da coleção não deixa de ser rico e de mostrar o espírito crítico social do autor e seu estilo muito particular de misturar uma boa dose de simpatia a uma ironia muito bem colocada para criticar, aqui e ali, o sistema social, econômico e escolar, dentre outros aspectos da sociedade inglesa do século XIX.

Tendo nascido em 7 de fevereiro de 1812 e morrido em 9 de junho de 1870, Dickens, cujo nome completo era Charles John Hoffam Dickens, teve uma infância estável, uma adolescência conturbada e de dificuldade financeira, e uma vida adulta de constante ascensão, na qual passou de taquígrafo a autor de renome mundial. Dentre suas obras mais famosas, encontramos Os Cadernos Póstumos da Sociedade Pickwick, Oliver Twist, Vida e Aventura de Nicolas Nickleby, Grandes Esperanças, Assim São Dombey e Filho, e Tempos Difíceis e, embora seja muito atraente tratar das obras mais densas do ponto de vista histórico e social, e que refletem de forma bastante clara a sociedade inglesa vitoriana impulsionada pela invenção da máquina a vapor, concentro-me na discussão das obras que, se não eram voltadas diretamente ao público infantil e juvenil, tratava dele. Assim ocorre com principalmente com Oliver Twist e David Copperfield.

O romance que trata da vida da personagem homônima foi originalmente publicado em folhetins semanais. A estrutura episódica dessa narrativa, que prendia o leitor em busca da resolução de uma dificuldade apresentada no capítulo lido anteriormente, fazia com que o público permanecesse cativo de maio de 1849 a novembro de 1850, quando foi finalmente publicado sob o longo título inicial de A história pessoal, as aventuras, a experiência e a observação David Copperfield, o mais jovem de Blunderstone Rockery (e que ele jamais quis publicar), mais tarde simplificado para o nome da personagem. A narrativa tem início com o nascimento do bebê David, numa casa em que sua mãe, Clara Copperfield, vivia com a empregada, Clara Peggotty (chamada somente de Peggotty devido ao nome igual ao da mãe do menino) desde que seu marido havia morrido, 6 meses antes. A infância do garoto é relativamente estável, e somente aos 7 anos, após o segundo casamento de sua mãe, ele conhece a crueldade pelas mãos do padrasto, Edward Murstone, e da irmã dele, Jane Murstone. Aterrorizado pelo padrasto e por Jane, David não consegue aprender as lições que sua mãe, frágil e de personalidade submissa, tenta lhe ensinar, e acaba apanhando de Murdstone. Em seguida, é enviado ao Internato Salem House, onde não há limite para a crueldade do diretor, que espancava aos alunos pelo mero prazer de exercer sua tirania. Mesmo assim, encontra ali os amigos James Steerford e Tommy Traddles, com quem virá a ser encontrar novamente anos mais tarde. Passado um ano no internato, David é levado à casa para as férias e conhece seu irmão recém-nascido. O regime ditatorial da casa e a gravidez haviam tornado Clara ainda mais frágil e, em seu retorno a Salem House, David é informado de que tanto sua mãe quanto seu irmão haviam morrido. Por isso, Edward o tira do Internato e o coloca para trabalhar numa fábrica engarrafadora de vinhos em Londres, da qual era sócio. Ali, David conhece o bondoso Sr. Micawber, cuja natureza era expansiva e muito compreensiva das dificuldades pelas quais as pessoas passam, mas cujo controle financeiro era inexistente, motivo pelo qual era frequentemente preso por inadimplência com seus credores. Sem perspectiva de melhora e sem amigos, David viaja a pé (pois havia sido roubado) de Londres até Dover, em busca da única parente que poderia ajudá-lo: sua tia-avó Betsey Trotwood, uma figura excêntrica e muito autoritária, mas também muito bondosa, e que estivera presente na ocasião do nascimento do garoto, quando saiu da casa dos Copperfield insatisfeita porque não havia nascido a sua "sobrinha", conforme acreditava que aconteceria, mas o menino que agora se apresentava a ela em farrapos, com fome e muito cansado. A narrativa recontada economiza em todas as vezes que o Sr. Edward tenta reaver a guarda do menino, agora interessado em seus bens (porque Betsey Trotwood era dona de uma boa quantia de dinheiro e de bens e havia renomeado David, que então passou a se chamar David Trotwood Copperfield), e concentra-se nos anos de formação de David no externato, enquanto morava com o Sr. Wickfield, advogado, e sua madura e abnegada filha Agnes. É nesta época que David conhece o falso Uriah Heep, que faz uso de um discurso exagerado de humildade para esconder suas atividades ilícitas e o desvio de dinheiro e de bens de Wickfield para si, bem como para subverter a ordem da casa e passar, paulatinamente, a mandar e desmandar no sobrado daquele que passaria, por coação, a ser seu sócio.

As atividades de Heep passam incógnitas e distantes para David, que havia se mudado para Londres em seus anos de juventude e ali se estabelecido como aprendiz num cartório comercial. Nessa época, o rapaz reencontra Steerforth e Traddles, e descobre que o primeiro era um boa-vida, enquanto o segundo era muito trabalhador e tinha esperança de juntar bens para poder se casar. Novamente, a adaptação de Waddington Jr. economiza em tramas secundárias e deixa de lado o drama de Steerforth e da pequena Emily Peggotty, que David havia conhecido em sua meninice, quando viajou com a empregada para a casa de seus parentes, no litoral, na época em que a mãe se casara, e passa a narrar as aventuras de David e de seu ardente amor pela voluntariosa e linda Dora Spenlow, filha de seu chefe. Seu romance é fadado ao fracasso não somente porque Jane Murdstone, agora dama de companhia de Dora, intercepta as carta e depõe contra David para seu chefe, mas porque de uma hora para outra sua tia Betsey se vê na pobreza e vai a Londres, juntamente com para morar com ele. Nesse ínterim, David resgata não só a amizade dos colegas de internato, mas também de sua querida amiga Peggotty, que havia se casado com o cocheiro Barkins (que o levara de sua cidade ao internato e de volta), e dos parentes de Peggotty. Pobre, David emprega-se no Parlamento como taquígrafo e com seu antigo professor como assistente para escrever um dicionário. Em seguida, começa a escrever pequenas matérias e anedotas ao jornal. Pouco a pouco, passa a compor romances e outras obras, e torna-se autor famoso. A esta altura, encontra-se casado com Dora, recentemente órfã e a cargo das tias. O casamento revela-se uma felicidade e um incômodo, pois sua "mulher-criança" não queria senão saber de cantar, desenha, declamar poemas e brincar com seu cachorro, deixando a casa a cargo de empregados que lhes roubavam bens e revelaram sua vida na sociedade. Paralelamente, David toma ciência da degradação financeira e moral de Wickfield e tenta ajudar a Agnes, a quem considera como irmã, a retomar as rédeas da situação. O caos na casa se instala quando Uriah Heep revela-se apaixonado por Agnes e o pai da moça se revolta sem, no entanto, ter o poder de expulsar o homem de suas vidas. Nesta situação, o papel de Wilkins Micawber, agora empregado de Uriah Heep, é fundamental, porque é ele quem descobre todas as falcatruas do vigarista e o expõe, salvando não só os Wickfields, mas os próprios Copperfields da miséria, já que Betsey havia perdido grande parte de sua fortuna em investimentos da firma de Wickfield. A trama se desenvolve e David passa a se dedicar exclusivamente à literatura, enquanto em casa ele vive o drama de um aborto e da morte de sua jovem esposa, tão parecida com sua própria mãe. Em decorrência da tristeza e do degosto, o escritor viaja pela Europa, sem deixar de escrever seus livros, mas a tristeza não passa, e somente quando retorna e reencontra os amigos é que passa a se sentir melhor. Então, o maior dos segredos é revelado: Agnes, a amiga de todas as horas e consoladora de suas agruras, havia guardado seu amor por David, e somente por intervenção de Betsey o sentimento mútuo é revelado e eles então se casam, gerando três filhos -- dos quais uma é de fato e finalmente nomeada Betsey Trotwood.

Este grande resumo dá conta de narrar as ações do livro, mas não a riqueza da construção das personagens e da forma como o narrador explora a linguagem para ser ácido, ainda que bem humorado. Assim é quando descreve o início de suas aulas no internato e o discurso do diretor, o Sr. Creakle: "-- Meus jovens discípulos... [...] eis-nos iniciando um novo semestre. Muito cuidado! Espero que tenham voltado com ardor para as novas lições, porque voltei cheio de ardor para puni-los! E o meu ardor não esmorecerá! Agora, aos Estudos! // Depois de ouvirmos essa animadora preleção [...], fiquei imaginando que não haveria no mundo um homem que amasse tanto a sua profissão como o Sr. Creakle. Pois, nela, ele podia satisfazer plenamente o seu incontrolável desejo de bater, que só se saciava depois de ter espancado bastante sua vítima, geralmente recrutada entre os alunos menores" (DICKENS, 1850; 1972: 43). Não é preciso dizer que Copperfield era um dos menores, bem como seu amigo Thomas Traddles.

É preciso, contudo, dizer que David Copperfield é considerada uma obra altamente autobiográfica, pois ela se assemelha muito aos vários percalços pelos quais o autor passou. Quando seu pai -- fonte inspiradora para a construção do adorável Sr. Micawber -- foi preso por não ter saldado suas dívidas, David Copperfield foi trabalhar numa fábrica que fazia graxa para engraxar sapatos. seu trabalho consistia em etiquetar os vidros de graxa, e o de Copperfield, na engarrafadora de vinho, consistia em lavar as garrafas inteiras, enchê-las e etiquetá-las. Assim como a personagem, Dickens recebeu herança de família, mas não deixou de trabalhar, tendo sido, tal como David, empregado de cartório e taquígrafo, para então se tornar um autor de sucesso. Estes são somente os traços principais de semelhança desta personagem que o autor declarou ter sido a sua predileta.

Numa época em que grande parte da economia inglesa local era sustentada por mãos de pequenos trabalhadores explorados durante horas a fio, como vimos anteriormente na resenha do volume 6 da coleção, Charles Dickens retrata de forma bastante fiel a economia e a configuração social inglesa, sem jamais deixar de lado sua crítica. É assim que contrasta, por exemplo, a situação de trabalho no cartório, onde não se podia obter salários ou benefícios porque, conforme se usava à época, os sócios faziam um do outro o vilão incompreensivo e rígido que não permitia concessões ao funcionário, de forma que quando se falava com o sócio número um, ele dizia que era bondoso mas que não poderia fazer nada em prol do empregado porque o sócio número dois não permitia, e quando se falava com o sócio número dois, era o sócio número um o grande vilão da história. Ou, ainda é de forma bastante ácida que Dickens julga o sistema educacional e o compara ao sistema penitenciário, posto que o Sr. Creakle acaba se tornando um diretor de presídio quando Salem House é fechada. "Vigiar é punir" se tornou, no século seguinte, o mote para o grande estudo de Foucault a respeito do tema, e não duvido que o estudioso tenha visto aí exemplo do fracasso de tal empreitada. Além disso, Dickens era um excelente conhecedor das ruas londrinas e de sua rotina para deixar escapar à sua narrativa os detalhes que a fazem tão cheia, pobre, encarvoada e perigosa para os inocentes. Estes aspectos fazem com que ele seja considerado um realista, embora muitos críticos também considerem que a obra dickensiana seja melodramática e sentimentalista em demasia, e cujo desfecho é "feliz demais" para ser verídico. De fato, se pararmos para analisar o final, tudo acaba bem: os Micawbers e os Peggotties vão para a Austrália e lá se estabelecem com sucesso; David casa-se com Agner e tem filhos, Clara Peggotty Barkins, já viúva do cocheiro, torna-se uma pessoa financeiramente bem-sucedida mas vai morar com a tia de David, e Thomas Traddles casa-se com sua namorada. Somente a pequena Emily, enganada por Steerforth, cai em desgraça e se torna uma prostituta em Londres, mas é resgatada por seu tio, o Sr. Peggotty, e seu primo Hamm. Esta narrativa secundária é, porém, retirada do volume adaptado do Waddington Jr. -- talvez, não só pelo volume que toma no todo, mas pelo conteúdo mais forte para a faixa etária leitora da série.

Tal como ocorreu a vários outros clássicos, David Copperfield tornou-se objeto de adaptações cinematográficas desde a mais tenra idade do cinematógrafo: o primeiro filme sobre a narrativa foi produzido em 1911, dirigido por Theodore Marston, e neste ano deverá sair mais uma adaptação para a grande tela. Além disso, a obra foi também adaptada para teatro, para leitores mais jovens (como é o caso deste volume) e para desenho. Seja como for, ainda hoje continua viva e apela para não só para a realidade pungente de uma criança numa época tão datada quanto a Inglaterra vitoriana, mas aos nossos corações, eternecidos pela narrativa de uma personagem que viveu a penúria, mas não endureceu o seu próprio coração, e continua a nos ensinar lições como honestidade, perseverança, amor e lealdade.

Fonte de informações sobre o autor:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Dickens

3 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Boa tarde Fabiana.
Parabéns pela sua iniciativa de resgatar estas histórias que marcaram época. Por volta de 1993, eu tinha 10 anos, morava em Portugal, ganhei de presente essa coleção quase completa. Porém, por uma série de adversidades, tive de voltar ao Brasil em 1996 e essa coleção, infelizmente, não pude trazê-la. Meu pai que ficou lá mais 6 meses, doou essas obras a uma biblioteca. Encontrei o seu blog por estar pesquisando qual a melhor versão da obra "O três mosqueteiros" de A. Dumas. E aí comecei a lembrar dessa coleção de livros que eu tive na infância, em cujo época eu não gostava de ler, e hoje aos 26 anos, e mais interssado em leitura, não tenho os livros que gostaria de ler, por que os perdi há quase 15 anos. Enquanto isso, tentarei encontrar a 'tal' versão dos 'mosqueteiros' para ler depois que conlcuir a leitura da coleção "Deixados para trás" (Left Behind) que estou lendo atualmente.
FIca com Deus e mais uma vez, parabéns.

9 de março de 2010 às 16:19  
Blogger Fabiana Tavares disse...

Olá, Patrick, obrigada pela visita. Não desista de reencontrar estes livros: há volumes desta coleção em vários sebos virtuais, e também em leilões online. Há vários volumes e preços, e andando pela cidade, visitando sebos, você consegue coisas legais. Há até mesmo volumes lacrados à venda, sabia? Foi assim que eu consegui minha coleção, e dela não abro mão! Boa sorte e beijos!

16 de março de 2010 às 09:37  
Blogger Cris disse...

Aqui em Fortaleza tem livros dessa coleção em quase todo sebo. Aos poucos pretendo colecionar.

5 de outubro de 2010 às 15:10  

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial