Volume 50 - Tom Jones - Henry Fielding
Imagine a seguinte situação: você, juiz benquisto numa
comunidade rural, rico e bonito, solteiro, já na meia-idade, e conhecido tanto
pela bondade quanto pela justiça com que pratica sua profissão, chega em casa
depois de muitos meses fora, resolvendo negócios, e encontra na sua cama, sob
os lençóis, um bebezinho de dias de idade. Assim começa a história de Tom Jones
– ou, para referir-me ao nome completo do livro, A História de Tom Jones, um Enjeitado.
A última narrativa trazida ao leitor pelos editores da
Coleção Clássicos da Literatura Juvenil foi
magistralmente adaptada por Clarice Lispector, cujo trabalho reduziu o volume
originalmente publicado em 18 “livros”, em 1749, mas que habilmente manteve o
espírito político, moral e eminentemente iluminista da obra de Henry Fielding. Nesses
livros, o autor intercala a narrativa com suas observações acerca da natureza
humana, do processo de composição literária, da sociedade da época e dos
problemas vividos na Inglaterra com a história do personagem Tom, no que hoje
sabemos se tratar de um romance de formação (o termo técnico, em literatura,
para este tipo de romance é Bildungsroman).
Tom é, então, encontrado na cama do juiz, que se
enternece e julga que alguma alma desesperada o tenha deixado ali na esperança
de que o bom homem se compadecesse e o tomasse sob sua tutela. Se nos dias
atuais uma situação dessas gera especulação, é de se imaginar o que, em tais
circunstâncias, passa a ser cogitado na província: que, certamente, trata-se de um
bastardo do próprio juiz e que este disfarça para que possa cuidar do filho
sem lhe reconhecer a paternidade. A este mexerico contribuem as empregadas das
casas das gentes ricas e dos pobres, e da própria casa do juiz Allworthy –
notemos o nome dado ao personagem, mais como reconhecimento de suas qualidades
(worthy – “merecedor”, numa tradução livre”, e all = todos; tudo; portanto, “merecedor
de todas as boas coisas que possuía e ao bom espírito que mantinha).O juiz o
cria como filho, junto à Bridget, irmã solteirona que, logo no início da trama, casa-se
com um provinciano que vê ali chance de enriquecer, e de cuja união resulta o
nascimento do vilão Blifil.
Tom Jones cresce sob a alcunha de filho bastardo da aldeã Jenny Jones – pois logo se procedeu à caça de alguém que assumisse a “culpa” por
ter dado à luz a um filho não reconhecido – e de um mestre de escola, que
ensinava latim a meninos e para quem Jenny havia trabalhado. Durante o crescimento, dá muitas provas do seu bom
caráter e do seu espírito elevado. Aqui e ali, o narrador pontua de forma
bastante irônica sobre como ele é vítima do ciúme, da inveja e das intrigas dos
tutores que cuidam da educação de Blifil e de sua educação, bem como aproveita
para explicar que ao espírito reto basta a noção de religiosidade, de moral e
de disciplina, e então uma escola (que, naquela época, era artigo de luxo
reservado aos filhos de nobres e aristocratas) tornar-se-ia desnecessária. De
fato, o narrador faz de Tom a prova viva de sua defesa, ao longo das aventuras.
Se, por um lado, Tom é bondoso, bonito, forte como
um touro e muito inteligente e sábio, por outro é estouvado e faz tudo com
muita paixão, e por isso não mede as consequências do que faz. É assim que
ele se vê mentindo ao juiz sobre seu envolvimento numa caça ilegal de animais na
propriedade do vizinho, o Sr. Western, somente para proteger o guarda-caça que
estivera “roubando” carne para alimentar a própria família, e depois vende seu
próprio cavalo para custear a vida da família do guarda-caça, já que este fora despedido quando o juiz descobriu que o rapaz havia mentido para protegê-lo.
Nessas idas e vindas, Tom se envolve rapidamente com a
filha do guarda-caças Black George, mas é pela linda filha do Sr. Western,
Sofia, que se apaixona, e é retribuído. As aventuras propriamente ditas começam
quando o pai de Sofia descobre que a moça quer se casar com o “bastardo” e
decide forçá-la a se casar com Blifil, o vilão que se encarrega de contar as
maiores mentiras acerca do caráter e das feitas de Tom para o tio. A esta
altura, havia-lhe morrido o pai, de quem herdara a “boa” e “honesta” índole, e
a mãe, Bridget, tornando-o o único herdeiro potencial das riquezas e das terras do tio.
A trama está feita: Sofia encontra um modo de fugir
com sua criada, em direção a Londres, onde se refugiaria com uma parenta, e Tom
Jones, rejeitado pelo protetor por causa das blasfêmias de Blifil e sem esperanças de se casar com sua amada, é expulso da casa de Allworthy e sai sem rumo. Primeiramente, quase chega a se alistar no exército, mas uma série de incidentes fazem com que ele saia ao
encalço de Sofia, e no caminho encontra nada mais, nada menos do que o mestre
de latim, Partridge, de quem ouve toda a confusão acerca do seu nascimento. Ambos
seguem caminho para Londres, de estalagem em estalagem, sempre no encalço de
Sofia, e muitas confusões se seguem. No melhor estilo Fielding, digo que não
vou cansar o leitor e a leitora e de que faço desta resenha o que bem entender,
e que não interessa aqui reproduzir todo o enredo, mas destacar dois aspectos
bem interessantes: o primeiro diz respeito à sociedade inglesa da época e o
segundo à estrutura e à inspiração para este romance que foi tido, pela
história da crítica literária, como o primeiro romance realista inglês.
Voltemos aos personagens de Fielding. Nas andanças
pelos condados ingleses, Tom convive com o submundo dos ladrões, assassinos, ciganos,
oficiais do exército e a ralé que compõem grande parcela da sociedade da época,e se
destaca, sempre, como um ótimo juiz de caráter que evita a briga a todo custo
mas não hesita em defender a honra de uma mulher, quando essa assim o merece.
Ao longo de suas aventuras e desventuras, aprendemos um bocado sobre o mundinho
das fofocas e intrigas, do disse-que-disse dos criados, cujas impertinências e
indiscrições revelam muito mais do que poderiam e acabam por colocar seus patrões
em situações perigosas, ao mesmo tempo em que acabam, muitas vezes, por
salvá-los de enrascadas e de intrigas e mentiras engendradas pelas pessoas da
corte, que como bem aponta o narrador,
vivem para prejudicar e dissimular, de forma a angariar paixões e alimentar
seus vícios. Tom, o “enjeitado”, era muito mais correto e nobre do que sua
origem permitia que o fosse, pela “natureza” de onde havia ele surgido. A propósito,
a própria história de Tom é um sintoma da sociedade inglesa do século XVIII,
quando ela se viu inundada de “enjeitados” (“foundlings”, em inglês) frutos de relacionamentos extraconjugais e
o que gerou a necessidade de o governo e as sociedades de caridade fundarem o
primeiro hospital do enjeitados (que sobreviveu até início do século XX).
Como contraponto às loucuras do bom moço em busca de
sua amada, o leitor encontra o mestre Partridge, bonachão, comilão e preguiçoso,
que segue seu mestre e o coloca, bem como o tira de, confusões e quiprocós. No bom
estilo Sancho Pança, em quem ele foi bastante inspirado – e de forma bem
caricata –, Partridge auxilia Tom Jones e, tal como Sancho, dentro do que lhe é
possível, controla o temperamento do amo (a quem insiste em chamar de amigo e
de quem diz que não é empregado, embora na prática o seja) e o livra de grandes
enrascadas.
Como todo bom romance do século XVIII, a história
conta com subenredos que não vale aqui detalhar, seja pela importância menor,
seja pelo nível de minúcias que exigiram muitas explicações. Vale dizer que a história se resolve a contento porque, na verdade, revela-se a grande origem de Tom: ele é, na verdade, um fidalgo, filho da própria Bridget Allworthy com um protegido do juiz que havia morrido muito cedo. Ora, sendo solteira e dona de reputação e fortuna, Bridget arma o esquema para que Tom seja amparado pelo irmão e viva com ela, sem que para isso arrisque sua posição. Vale ainda dizer que, ao morrer, deixou essa revelação clara em carta ao filho Blifil, mas este, ganancioso e invejoso, havia ocultado a informação, que vêm à tona somente no final da trama. No mais, deixo ao leitor e
à leitora a tarefa de ler o romance e se deleitar com a ironia do autor, a
capacidade de narrar como se fosse Fielding um titereiro (para quem não sabe, um manipulador de marionetes), os comentários
mordazes que ele tece contra os Whigs e os tories
-- representantes políticos ingleses
da ala direita --, e a maestria com que analisa a sociedade e o papel do
escritor ao colocá-la no papel, em forma de criação artística. Como ele mesmo o
diz, na conclusão de sua introdução, ao construir uma bela comparação do papel
do escritor ao de um chef e de seu trabalho a um banquete: “em nosso caso,
apresentaremos não só uma lista geral dos pratos de todo o banquete, mas
ofereceremos ao leitor listas especiais para cada serviço apresentado. Em nosso
banquete mental as iguarias se limitam à natureza humana. Mas o leitor não pode
ignorar que a natureza humana, aqui reunida num só nome geral, apresenta uma
prodigiosa variedade. E será mais fácil a um cozinheiro dar cabo de todas as
espécies de alimentos animais e vegetais do que a um escritor esgotar tão
dilatado assunto”. A esta altura do campeonato, ao encerrarmos a série de leitura
e resenha de cinquenta volumes da Coleção
Clássicos da Literatura Juvenil, bem sabemos que o caminho mais
do que comprova esta afirmação e, espero, tenha deixado em você a vontade de
percorrer, enquanto viver, o universo infinito da experiência humana que a
literatura proporciona.
Fonte de informações sobre o autor:
9 Comentários:
Olá Fabiana! Tudo bem?
Adquiri recentemente a coleção Clássicos da Literatura Juvenil em um sebo e pesquisando na web sobre as obras encontrei seu blog. Notei o excelente trabalho que você desenvolveu escrevendo as resenhas de cada livro e que concluiu recentemente. Ainda não li todas as resenhas, mas dá para perceber que o conteúdo apresenta ricas informações sobre as histórias, autores e análises do contexto social do tempo em que as obras originais foram escritas. Utilizarei essas informações para a leitura de todos esses livros.
Também tenho um blog voltado à Literatura Estrangeira, focado nas obras de Júlio Verne, em que estou escrevendo resenhas sobre os livros que compõe as chamadas Viagens Extraordinárias. Caso queira colaborar com seus ecritos para este blog, suas informações serão bem vindas.
Tudo de bom e muito sucesso :D
oi fabi eu tenho parte dessa coleção a parte final
Olá, sou estudante de Letras e apaixonada por literatura infanto-juvenil. Ao pesquisar livros na biblioteca da Universidade (UFRPE), me deparei com uma coleção chamada "Grandes aventuras" que, se não me engano, foi posterior a essa e republicou alguns títulos; porém, me interessei bastante em obter mais informações sobre esta série e tenho uma dúvida: quantos livros foram ao todo? Foram 50? O seu blog é fantástico e certamente darei uma lida nele por completo. Muito obrigada por esse belo trabalho!!!
Oi Fabiana, recentemente consegui na OLX 39 livros da coleção clássicos da literatura juvenil, procurando pelas sinopses dos livros encontrei seu blog, estou apaixonada pelo seu trabalho, apresenta resenhas ótimas e detalhas, parabéns pelo trabalho e agradeço o conteúdo.
Olá. Eu cresci à base dessa coleção. Fiquei surpresa e alegre ao ver as capas.
Seus posts são muito bons. Parabéns!
Comecei a adquiri-los em 2013. Comprei quase toda a coleção e... doei tudo quando me mudei de Fortaleza para Taguatinga, DF.
Papai, que completou 84 anos há dois dias, comprou o volume 2 da Coleção, "O Conde de Monte Cristo" (dez 1971). Era e ainda é fã desta estória. Ele começou a lê-lo para nós seus filhos, na época eramos apenas crianças. Nunca terminou.
Há três anos tomei a decisão de obter toda a coleção. Fui comprando-os paulatinamente e assumi sua antiga posição de leitor (hoje, ele está praticamente cego). Li uns doze ou treze volumes (podem ter sido mais) para ele que apreciou sobremaneira as narrativas. Me emociono ao cumprir uma tarefa iniciada por ele.
Ola Fabiana, tudo bem? Estou procurando a coleçao da Abril Cultural (Classicos da Literatura juvenil) para minha filha e gostaria de saber se você teria interesse em vender a sua. Por favor, entre em contato comigo pelo email fabianarguimaraes@gmail.com
Obrigada.
Boa tarde, Fabiana!
Estou encantada com este seu maravilhoso trabalho. Sou professora de Literatura aqui em Alta Floresta-MT e estou num trabalho intenso de leitura com meus alunos. Cresci com a leitura destes clássicos e meu desejo é que meus alunos também os leiam. Estou empenhada em apresentar aos meus alunos bons textos e suas resenhas ficaram muito claras e acredito que nossos alunos apreciarão a leitura. Gostaria de sua permissão para tornar suas resenhas material didático para incentivo à leitura destes clássicos. Logicamente com os devidos créditos. Há tempo estou pesquisando informações a respeito dos clássicos para que meu trabalho seja realmente eficiente e que eu possa proporcionar às crianças um bom percurso nessa caminhada de formação de leitores. Meu e-mail cassiadalli@yahoo.com.br.
Grata pela partilha!
Abraços literários aqui do Mato Grosso
Cássia, a resposta vai tarde, mas antes agora do que nunca. Fico contente que tenha apreciado o material e, se servir para aulas, tem minha permissão para o uso em aulas, desde que, é claro, sejam dados os devidos créditos. Espero que seus alunos saibam valorizar seu trabalho de educação para o letramento literário! Um abraço da Fabiana.
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