Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Volume 21 - Robinson Crusoé - Daniel Defoe


Apresentado na coleção Clássicos da Literatura Juvenil como seu vigésimo-primeiro volume, Robinson Crusoé não é uma adaptação, mas uma tradução feita do livro publicado em 1719 por Daniel Defoe (1660-1731), com a inclusão, neste único romance, da continuação publicada pelo autor em 1720.

Assim, o romance conta a história do inglês Robinson Crusoé, a quem a família destinara um futuro como advogado na cidade inglesa de York, mas que o destino e a imensa, inabalável vontade de se aventurar lançam ao mar. Desde o início, o jovem se depara com aventuras de tempestades, navios partidos e resgates em alto-mar. Mesmo assim, continua sua jornada de peripécias e, por quatro anos, estabelece-se como proprietário de um engenho (uma propriedade de terras onde se plantava e refinava cana-de-açúcar) na Bahia, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. A cultura colonizadora e o espírito de aventura levam-no, oito anos depois de ter iniciado sua jornada de autoconhecimento e de construção da sua fortuna, a tentar a compra de escravos, na África, mas uma tempestade o assalta em pleno mar, e ele se vê único sobrevivente do naufrágio, lançado em uma ilha da América do Sul, ao largo do rio Orinoco.

Tem início ali a construção do verdadeiro caráter da personagem e da obra, que se estabeleceu como o primeiro romance inglês. Dono de uma grande força de vontade, de forte espírito religioso e moral, e de bons braços e pernas, Robinson aproveita a sorte ou a bênção de ter o navio partido fixado-se num banco de areia perto da ilha, e por dias transporta para terra firme todo o conteúdo da embarcação. Desta forma, mune-se de armas variadas, pólvora, balas, machados, ferramentas, verrumas, lonas, colchões, cobertores, redes, comida, sementes e uma infinidade de outras coisas que faziam parte da carga que ele transportava. Temeroso de ser assaltado por nativos, logo constrói uma paliçada perto de um rochedo e, dentro dela, a sua casa. Em seguida, vêm a caça e a criação de cabras, a semeadura da terra, o fabrico de queijo, a construção de móveis, e a organização de um sistema de vida que incluía exploração da ilha e alargamento da propriedade, tendo ele até mesmo construído o que viria a chamar de "casa de campo" mais para dentro da ilha.

Por vinte e cinco anos, à revelia de sua solidão e da falta de contato social, por mínimo que fosse, o náufrago constrói o que seria a gênese de uma sociedade civilizada, com criação de animais, plantações, e engenhocas que lhe serviam de instrumentos diários em sua lida com a terra e as casas, numa miniatura do que, em terras do norte, era naquela época paulatinamente construído pelos Pais Peregrinos na terra do Tio Sam: o espírito empreendedor do desbravador puritano -- que acredita na moral individual e na sua religião consigo e com Deus, a quem deve prestar contas --, estabelecia ali a construção do self-made man, ou seja, daquele que com base nas suas crenças e na sua força cristã e moral, valia-se de coragem e força física para vencer e prosperar na vida. A coisa fica mais clara quando Robinson salva um prisioneiro da morte, porque ele seria comido como resultado da vitória da tribo rival que o havia capturado e havia aportado naquela ilha com o único fim de ali realizar a matança dos prisioneiros e o festim canibalista que se seguiria à morte dos capturados. O homem sente-se tão grato pelo fato de Crusoe ter-lhe salvo e polpado sua vida, que dedica a ele eterno reconhecimento e serviço como escravo. Numa época em que o expansionismo europeu só conhecia a lei da propriedade e da cultura europeia como fonte de civilização superior, Robinson trata de nomear o nativo com um não-nome: Sexta-Feira, que tinha sido o dia em que a salvação tinha ocorrido, e em seguida, de ensiná-lo a falar sua língua, quando aproveita para ensinar-lhe a chamá-lo de Amo. Com esta ação, Robinson Crusoé estabelece a relação de hierarquia, em todos os sentidos, entre ele e Sexta-Feira: ele é o proprietário europeu da ilha e o mais velho, o outro é novo, nativo e escravo. Do ponto de vista cultural, Robinson estabelece bem o seu ponto de vista: "A sua conduta fez-me refletir e compreender que Deus deu a todas as criaturas humanas, tanto às civilizadas quanto às selvagens, os mesmos sentimentos e faculdades, a mesma inteligência, os mesmos afetos, iguais sentimentos de bondade e de noção do dever. Vi também que um canibal pode saber o que é gratidão, franqueza e lealdade, e que também ele é capaz de fazer o bem e recebê-lo com plena consciência" (DEFOE, 1719; 1972: 103). Embora as discussões de cunho pós-colonialista tenham se banhado em várias considerações sobre este contexto histórico e literário, o que me chama a atenção não é esta diferença cultural -- na verdade, enquanto observadora de um contexto como este, eu acredito mesmo que o mais óbvio seja encontrar essa realidade hierárquica, e que qualquer coisa diferente disso seria fora do natural --, mas a relação pragmática entre senhor e escravo e que, em última instância, desagua na situação dominante-dominado do sistema capitalista de produção, ainda que artesanal, pré-industrial, pois o narrador em primeira pessoa continua: "Em suma, estava tão contente com o meu novo companheiro, que passava horas ensinando-lhe a ser útil, hábil e trabalhador; e acima de tudo a me falar e a me compreender" (DEFOE, 1719; 1972: 103).

Após mais três anos na ilha, em comanhia de Sexta-Feira, período em que resgata da morte um espanhol e um nativo -- que era nada menos do que o pai de Sexta-Feira --, Crusoe resgata do mar, perto da ilha, a tripulação de um navio amotinado, tendo resgatado o comandante e rendido o restante. Fazendo-os trabalhar em prol de todos, consegue embarcar em direção a Londres, com exceção do espanhol Lope e do pai de Sexta-Feira, que haviam retornado a uma ilha próxima, onde existiam outros espanhóis náufragos convivendo pacificamente com a tribo local. A estada na Inglaterra é inquieta. Embora descubra que seu procurador tenha feito sua terra brasileira render e tenha transformado seus investimentos em muito dinheiro, nada lhe apazigua o coração, a não ser a delicada moça Isabel, com quem se casa e tem três filhos. Durante um tempo, estabelece-se como fazendeiro e produtor rural, porquanto o ócio seja visto como nocivo ao físico e à alma. Dono de uma personalidade empreendedora, logo transforma em fortuna o dinheiro investido no campo, a ponto de mandar os filhos à capital para serem educados. Porém, é em Londres que encontra seu infortúnio: vítima de doença galopante, sua esposa morre, e nada lhe cai bem. A paisagem inglesa é triste e nublada, e só se sente feliz e revigorado quando decide embarcar com seu sobrinho, a quem tinha emprestado dinheiro para que se tornasse imediato de um navio, rumo à sua ilha, onde dez anos antes, ao sair de lá, havia deixado três amotinados ingleses e uma carta para Lope, no caso de este voltar com o pai de Sexta-Feira e com os outros espanhóis. Para esta empresa, compra uma imensa carga de víveres, animais, ferragens de todos os tipos, tecidos, e leva consigo artesãos, alfaiate, marceneiros, e construtores de moinhos e outras engenharias que colocariam a ilha para funcionar de fato, organizada como uma sociedade, agora que possuía ele a permissão legal do governo inglês de se tornar responsável pela colonização da ilha. No meio do caminho, resgata um navio avariado e, dele, um jovem, uma criada e um padre francês. Todos seguem para a ilha, inclusive Sexta-Feira, que finalmente se vê livre da desolada terra inglesa.

O que encontram na ilha os supreende: não só Lope retorna com os espanhóis, como coloniza e governa admiravelmente a ilha e os colonos, estabelecendo convivência pacífica, à custa de muita paciência e perseverança, entre espanhóis, ingleses, portugueses e indígenas. A propriedade tinha sido ampliada, bem com as criações e plantações, e cada colono tinha agora suas terras, seus deveres particulares e comuns, e seus escravos para cuidarem de suas terras. De modo geral, é possível até mesmo comparar religiosamente a obra de Defoe com a Bíblia: trata-se, como parece, de uma nova Canaã, onde o povo resgatado da fúria do mar e da penúria da sobrevivência e da violência se organiza sob o regimento de um civilizador e ali convive pacificamente, de forma que os novos trabalhadores e bens materiais são adendos muito bem-vindos e um padre só vem coroar a glória divina, para pôr ordem na casa, casando os espanhóis com as nativas com quem tinham se juntado, e batizando os mestiços destas uniões, catequizando-os e ensinando-lhes a ler.

A obra ainda narra a visita de Crusoé ao Brasil e sua viagem à África e de volta à Inglaterra, passando pela China, pelo Tibete, pela Rússia, pela Espanha e pela França, até chegar em Dover e dali a Londres -- viagem durante a qual pereceu o fiel Sexta-Feira, vítima de ataque de indígenas ao navio em que estavam, ao sul da África --, mas é das aventuras deste novo homem, retratado nesta narrativa que expõe o lado pragmático do europeu civilizador e puritano que ajudou em grande parte a moldar o mundo como conhecemos hoje, e a definir os rumos da literatura inglesa, abrindo caminho para o sucesso literário estrondoso com crianças (pois da leitura de clássicos como este e como Gulliver, que se inspirou em Crusoé, é que adveio, em última análise, a literatura infantil e juvenil britânica), que jamais a humanidade vai esquecer, porquanto dele sofra, em alguma medida, os fortúnios e os infortúnios de ser o que é.

Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Defoe

1 Comentários:

Blogger José David Borges Jr. disse...

Nunca li uma resenha tão bem feita do Crusoe quanto esta. Parabéns! Adorei, principalmente, o final, onde vc faz a alusão da ilha do herói como um símbolo da civilização e da mestiçagem que lhe foi consequência. Queria ter acesso a esse exemplar, que traz a continuação da história. Tenho aqui várias adapatações e uma tradução, de Domingos Demasi. Se quiser, depois, trocamos figurinhas! rs... Bjos! Sdds! David.

29 de junho de 2010 às 13:24  

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