Volume 32 - Viagens de Gulliver - Jonathan Swift
O livro, traduzido com a clareza e a simplicidade que somente escritores da lavra de Clarice Lispector conseguem empregar, é a narrativa das aventuras e desventuras do cirurgião e marinheiro Lemuel Gulliver que, durante 15 anos e mais de sete meses, vaga pelos mares do mundo, sofrendo naufrágios e passando pelas terras mais estranhas, conhecendo os povos mais inusitados.
Todos conhecem, por causa de canções, livros infantis, desenhos, filmes e peças de teatro, a famosa viagem de Gulliver a Lilliput, a terra dos homenzinhos em que ele acordou preso ao chão por meio de cordas e estacas. Mas as significativas viagens de Gulliver (há as menores que se intercalam na narrativa) são, na verdade, quatro: Lilliput e Blefuscu; Brobdingnag; Laputa; e país dos Houyhnhnms e dos Yahoos.
É preciso esclarecer ao leitor e à leitora que Jonathan Swift era um homem de seu tempo não somente porque fosse muito envolvido em questões políticas e assuntos da ordem do dia, tais como conquistas, colonizações, guerras e exploração, mas porque ele exprimia, como resultado de sua vivência e de seu grande interesse, o espírito Iluminista que caracteriza o século XVIII -- e aqui aproveito para informar que Viagens de Gulliver foi publicado originalmente em 1726, quando outros escritores satíricos, como Alexander Pope, estavam em voga.
Assim sendo, cada uma das viagens de Gulliver visava claramente a atacar um aspecto da sociedade britânica. A mais clássica é, como todos sabemos, a viagem inicial, em que o narrador encontra-se náufrago em Lilliput (Lispector grafa "Lilipute"), país de seres humanos diminutos, tão pequenos como uma régua de 15 centímetros, e cujas árvores não ultrapassam a altura das pernas de um homem de estatura mediana. De ameaça, aos poucos passa a conviver amigavelmente com a população, e torna-se amigo do imperador, chegando mesmo a auxiliá-lo na derrota da investida do país vizinho, Blefuscu, ao tentar invadir as terras liliputianas. Detalhadamente, o narrador expõe como o povo o veste, alimenta, cuida de sua "casa", e o quanto isso custa de matéria-prima, esforço e muita mão-de-obra por parte de centenas de liliputianos, o que certamente onera os cofres públicos. Paralelamente, explica que a grande rixa entre liliputianos e blefusquianos é o fato de que os primeiros quebram ovos pelo lado grosso e o segundo pelo lado fino, tendo esta diferença gerado séculos de desavença entre ambos. Explica, ainda, que para se tornar político naquele reino, exigia-se que o candidato e o próprio funcionário sempre se mantivesse em dia com a prática do malabarismo e principalmente com a habilidade de caminhar sobre a corda-bamba.
Claro está ao leitor a cena inglesa de sutilezas políticas e os meandros pelos quais a política acontece e sobrevive na corte e na jurisprudência. Também clara é a alusão das questões ridículas pelas quais países entram em questões históricas, realizando guerras e dizimando populações inteiras em nome de caprichos que muitas vezes não afeta a vida das pessoas. Está aqui a metáfora -- talvez devesse dizer metonímia -- da guerra entre Inglaterra e França, duramente criticada por Swift em outras ocasiões. A redução destas disputas e do ridículo segue o exemplo gargantuesco, que para apagar o fogo da catedral Notre-Dame, urina sobre ela. Aqui, Gulliver realiza a mesma façanha, mas sobre os aposentos da imperatriz, que considera o ato como grande ofensa e traição, motivo pelo qual Gulliver, avisado por um amigo da "bondade" e da "misericórdia" do imperador, que dali a três dias anunciaria a retirada de seus olhos e depois, em segredo, o mataria de fome, foge para Blefuscu. Fica ali por tempo suficiente para construir embarcação e voltar à Inglaterra, onde expõe os animais liliputianos que havia trazido consigo em troca de dinheiro.
Logo, Gulliver, irresistivelmente atraído pelo mar, aventura-se de novo, e desta vez o naufrágio o leva a Brobdingnag, a terra dos gigantes. Vê-se ele no lugar dos liliputianos, e entende muitas coisas que lhes diziam aqueles. A primeira é a do quão assustador é o gigante, e a segunda é a do quão feios e malcheirosos eles são. Swift não poupa as observações de seu protagonista, e explica que o seio da giganta que amamenta o bebê é enorme, manchado, feio, e que jamais gostaria de ver algo assim novamente, e que as damas da corte são malcheirosas, mas isso porque ele tem olfato muito mais sensível e que, na verdade, em seu tamanho "natural", elas devem ser muito bonitas e cheirosas, e que somente então consegue compreender quando os liliputianos diziam que ele cheirava muito mal, e o rosto dele era cheio de buracos e irregularidades, quando normalmente ele é tido como um homem branco e louro de boa aparência. É importante explicar que Gulliver só chega à vida palaciana após ter sido explorado à exaustão por um lavrador que, viajando de cidade em cidade, exibe-o como um ratinho de circo que faz pantomimas, e que somente por obra da imperatriz, que o compra já quase morto, ele sobrevive e se recupera. Poupo a grande descrição sobre a sociedade e a política do lugar, e deixo ao leitor a oportunidade de ler e compreender que a crítica à "grandeza" da sociedade britânica é aqui ridicularizada, não só porque é Gulliver, o inglês, que a gora se vê pequeno como o Polegar das histórias infantis, mas porque ele observa, estando ele pequeno, o quanto as pessoas quanto menores são, mais discutem e disputam pelas ínfimas coisas, e o quanto a sabedoria e a justiça daqueles que dispõe de força e grandeza são bem maiores.
A terceira viagem de Gulliver faz com que ele encontre o país mais estranho: Laputa. Trata-se de uma ilha sobreposta a uma terra, e nesta ilha vive a nobreza e seu rei, controlando e oprimindo a população, composta dos mais excêntricos cientistas. Em Laputa, reinam a matemática e a música sobre todas as ciências -- todas mesmos, de forma que casa são estranhíssimas e desmoronam, suas são tortas, e lavouras são desordenadas e sem produtividade --, e sobre a terra que fica embaixo da ilha flutuante há a academia de gênios que tentam em vão provar suas teorias e experimentos, para o desespero da população que, perdida em contemplação do infinito, da probabilidade e despregada da realidade e da produtividade, não vive, de fato. Não só o autor condena o "se" em prol do empirismo, que é, como sabemos, um dos conceitos valorizados no Iluminismo, como aproveita para atacar massivamente, através dos exemplos mais absurdos (como o do cientista que tenta transformar excremento em comida, num caminho reverso da digestão), a Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge (Sociedade Real de Londres para o Avanço do Conhecimento Natural), a equivalenta à francesa Academia de Ciências, em que semelhantes disparates ocorriam e onde se investiam grandes quantias de dinheiro sem que houvesse resultado produtivo à sociedade. Esta, afinal, era quem pagava por tais iniciativas.
Finalmente, Gulliver se vê náufrago, vítima de motim em seu próprio navio, numa terra onde cavalos são inteligentes, compassivos, educados, e onde seres humanos estão reduzidos à selvageria e pouco se parecem com ele, porque andam com os quatro membros, têm garras no lugar de unhas, e muitos pêlos que lhes cobrem os corpos. Esses são chamados de Yahoos (sim, é daqui que saiu o nome da empresa e do site Yahoo!), ao passo que os cavalos são conhecidos como Houyhnhnms. Aos poucos, Gulliver aprende a linguagem dos cavalos e convive por mais de três anos com o chefe deles. Durante este período, ao mesmo tempo em que explica para o "amo" Houyhnhnm sobre a capacidade humana de conviver, conhecer, transformar conhecimento em ciência e usá-la em prol do avanço e da conquista, ele se dá conta da pequenez, da crueldade, da frieza e do quanto o ser humano é capaz de machucar e de desprezar e trair em favor da ganância e da avareza. Envergonhado, recebe em troca a educação e o modo de vida dos sábios cavalos, aprendendo com eles um modo de vida simples, regrada, de moral e de respeito mútuo. Pouco a pouco, aprende a desprezar o ser humano, mas ele se vê obrigado a voltar à sua terra natal porque os cavalos consideram que ele, ainda que civilizado, era um Yahoo e, por isso, não era digno de continuar a habitar sob o mesmo teto do chefe dos Houyhnhnms. Forçado pelos marinheiros portugueses que o resgatam de uma ilha próxima à terra dos cavalos, ele é levado a Lisboa e, de lá, retorna à sua casa, onde já o acreditavam morto. Aos poucos, suportando o contato com familiares e gente próxima, torna a conviver socialmente, mas passa a preferir, para sempre, a companhia dos cavalos, numa clara afirmação na defesa dos valores iluministas em prol da razão e do desprezo à sociedade na qual ele, Swift, habitava.
Como o leitor e a leitora podem ver, longe de ser bonitinho, Viagens de Gulliver apresenta como recursos narrativos o cômico e o grotesco, numa linguagem em primeira pessoa, tal como vemos em outras obras célebres da época -- por exemplo, Candido, de Voltaire --, para fazer a defesa de uma sociedade em que a justiça, a liberdade, a moral, o respeito e a razão fossem as velas apoiadas em mastros de sabedoria e humanidade -- em suma, muito diferente do que países em franca expansão econômica eram, certamente, muito diverso do que hoje nós infelizmente testemunhamos.
Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jonathan_Swift
1 Comentários:
Olá Fabiana
Excelente o seu trabalho
meu pai tem essa coleção completa, li alguns exemplares.
Parabéns!
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