Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Volume 15 - Sem Família - Hector Henri Malot

Se há um gênero que aflorou e se desenvolveu de forma vigorosa no século XIX, este foi o romance de formação (ou de iniciação, de acordo com a definição vigente para cada um). Para aqueles que não sabem, a expressão "romance de formação" foi cunhada por um alemão em 1820, de nome Morgenstein, e serve para designar a história cujo enredo apresente um protagonista e sua história de crescimento e desenvolvimento físico, psicológico, emocional, educacional, moral e até mesmo religioso.

Para que seja um romance de formação, a obra segue mais ou menos um "esquema", por assim dizer: a personagem principal, ainda pequena, sofre algum infortúnio e é afastada do convívio no qual se sente segura e feliz. A partir daí, sozinha, passa por diversas agruras e problemas, que servem para colocá-la à prova e para formar o seu caráter, até que, crescida, ela possa relatar a história que o leitor está acompanhando no livro que lê. Ora, estou hoje aqui para tecer minhas observações acerca do décimo-quinto volume da coleção Clássicos da Literatura Juvenil e, a trinta e cinco volumes do final, posso recapitular a vocês o quanto este gênero é do apreço da literatura juvenil: A Iha do Tesouro, O Conde de Monte Cristo, David Copperfield, Ben-Hur, Huck Finn e agora Sem Família apresentam este gênero literário para seus leitores -- o que equivale, pois, a 40% das obras publicadas até este volume.

De forma muito semelhante a Dickens -- e até porque eram contemporâneos, posto que o escritor francês Hector-Henri Malot nasceu em 1830 e faleceu em 1907 --, o autor de Sem Família (e de mais outro tanto de obras que somam mais de 60 publicações) se vale do contexto social e econômico para criar a atmosfera e o enredo do qual o menino Renato surge, numa vila de camponeses situada na inóspita região central da França. Criado por Maria Barbarino, ele só vem a saber que é adotado quando seu suposto pai, Jerônimo Barbarino, volta de Paris e se depara com o menino na casa. Originalmente, o bebê Renato havia sido encontrado na vila, abandonado em roupas de luxo; Barbarino havia-no tomado sob custódia porque se interessara pela possibilidade de um pagamento como recompensa caso a família viesse a encontrar o garoto. Agora, 8 anos mais tarde, pobre e desempregado devido a um acidente que o deixara "aleijado", Jerônimo se vê na incumbência de se livrar de mais uma boca para alimentar e, por isso, aluga-o a um velho italiano, cantor e ambulante que apresenta "espetáculos" teatrais e pantomimas com músicas e com sua trupe de animais -- o cão Capi de pêlo curto e branco, chefe do grupo; o garboso e negro Zerbino e a poodle Dulce, além do espero macaquinho de sugestivo nome Boa-Vida, com sua farda de general. Vitalis é a tradução dos valores de liberdade, tenacidade, amor, compreensão, carinho, coragem, determinação e fé.

Através do velho cantor ambulante e de um caminho que traça muitas regiões da França, Malot incute no protagonista o respeito ao próximo, o amor pela educação e pelas boas consequências que dela surgem, tais como a independência e o planejamento de uma vida de viagens e de trabalho, e questiona o preconceito que as pessoas da época tinham contra os artistas ambulantes, normalmente encarados como vagabundos, ladrões e, muitas vezes, assassinos (não nos esqueçamos dos exemplos dos ambulantes de Huck Finn!). Ao mesmo tempo, em uma França onde vigoram o liberalismo e a opressão contra as classes miseráveis, em meados do século XIX, Malot ridiculariza a figura policialesca, não por desprezá-la ou aumentar seus defeitos, mas por rechaçar toda a autoridade presumida que possuem sobre outrem sem que lhe dê a chance de justificar seus atos. Por isso é que, quase no final da Primeira Parte do livro, quando Renato está com cerca de 10 anos, Vitalis é preso por dois meses e o garoto se vê só e com a responsabilidade de cuidar de si e dos animais. A intervenção aparece na figura da Sra. Milligan e de seu adoentado filho Artur (vítima de coxalgia), que assistem a uma apresentação de Renato, na estação das águas francesas, e os convidam a permanecer com eles até que Vitalis seja solto. A afeição entre todos cresce e a dama deseja ficar com Renato, mas Vitalis se nega, pois acredita que a educação pela liberdade é melhor do que a conformação do menino à casa, onde seria tido como um criado de luxo.

Sendo este um romance de formação e de estrutura episódica, o leitor deve sempre estar preparado para a infelicidade seguinte. Por isso é que Zerbino, Dulce e Boa-Vida vêm a morrer, de forma que o velho não vê outra alternativa a não ser tentar sublocar Renato a um italiano de nome Garófoli, em Paris, durante o inverno. Sua esperança é a de poder ganhar um mínimo com que iniciar uma jornada de aulas de música para jovens parisienses ao mesmo tempo em que deverá treinar novos animais para que na primavera retomem seu rumo. A cena é bastante propícia para Malot escancarar a situação de miséria de crianças urbanas, locadas a patrões que as exploravam ao máximo como se fossem burros de carga, cobrando-lhes quota diária de vencimento, fosse em esmolas ou "apresentações" de hamsters, canções, truques ou o que fosse. A descrição da entrada de Renato em Paris, sempre em primeira pessoa do singular, é interessantíssima, porque mostra não a gloriosa cidade das luzes, mas uma periferia imunda, esfumaçada, repleta de ruelas tortas, escuras, escusas em cujos lugares habitavam todo tipo de gente pobre de moral duvidosa, incluindo os padrones como Garófoli, em mansardas malcheirosas, apertadas, sem estrutura alguma nas quais pobres crianças aprendiam a lei do mais forte ou sucumbiam -- literalmente -- a ela. Embora ela transcorra em poucas das 360 páginas do livro -- a adaptação/ tradução mais longa da coleção --, a conversa de Renato com Matias, o garoto doente e mirrado que toma conta da panela trancada com o ensopado do dia, no fogo, a cena da chegada dos meninos à mansarda e o castigo em chicotadas desferidos sobre eles, valendo uma chicotada a cada moeda que lhe faltasse na quota do dia, tudo inspira horror e abjeção.Esta é a cena que Vitalis encontra ao buscar retornar à mansarda e, por isso, mesmo diante da penúria, nega-se a deixar o garoto com seu conterrâneo.

O resultado deste sentimento nobre é a morte, por frio e fome, de Vitalis, e a congestão pulmonar de Renato. Este é o episódio que abre a Segunda Parte do livro. Acolhido pela família Aquino, Renato encanta-se pela simplicidade, pela disciplina, pelos momentos de distração com a família, após o trabalho, e sobretudo por Lise, a caçula muda com quem estabelece uma ligação inexplicável. Durante dois anos ele permanece com o jardineiro Pedro Aquino e com seus filhos Eliana, Benjamin, Aleixo e Lise, e só ganha as ruas novamente, em companhia de seu cão, Capi, quando o pobre homem é preso por dívidas, por não conseguir quitar a hipoteca de sua casa e de suas terras de plantio, e as crianças são distribuídas entre os familiares. Novamente, a crítica social chega na minúcia do dia-a-dia, e o narrador explica que os camponeses, que fazem de tudo por seus familiares, não se sentem na mínima obrigação de ajudar ao próximo em seus infortúnios quando não se trata de família.

Nesta nova reviravolta, Renato encontra Matias, o garoto doente que morava com Garófoli. Recém-saído de um grupo circense, Matias explica que o italiano, de quem é sobrinho, havia alugado o garoto a um circo pequeno depois que este se motrara muito doente para executar quaisquer tarefas que lhe rendessem a quota diária a pagar ao padrone. Embora se deva aqui guardar as devidas proporções, o leitor não pode deixar de pensar no contexto brasileiro, quando, nos períodos colonial de do Império, vigorava o que era conhecido como "escravo de ganho", ou seja, aquele que devia cumprir uma quota diária de dinheiro vendendo doces, balas, carne, ou até mesmo se prostutuindo para entregar a quantia ao seu senhor no final do dia; a diferença, aqui, é que os meninos não conquistavam a liberdade comprando-a diariamente, como ocorreu no Brasil quando o sistema passou a ser regulamentado pelo Estado, mas viam-se livres através da morte ou caso os padrones fossem presos -- como ocorre no caso de Matias. Juntos, ele e Renato percorrem outras tantas regiões da França visitando os Aquino e passando por mais uma série de peripécias que contribuem para que Renato reafirme os valores que aprende com Vitalis acerca de liberdade, moral, caráter e lealdade. Dessas tantas aventuras, os quatorze dias que passa soterrado na mina de carvão em Cevènnes é apenas um gostinho da vida e dos problemas que os mineradores passavam e do que, mais tarde, Émile Zola viria tão bem a retratar.

Neste romance, é muito interessante o leitor reparar na caracterização das personagens e nos lugares descritos através do romance. Se acompanharmos em um mapa da França, percebemos a clara intenção que Hector Malot teve de descrever as regiões e os povoados de cada região: os camponeses centrais, os agricultores de Bordoux, os marinheiros do mediterrâneo e da Normandia, os urbanos parisiences, o provincianos da região de Rouen (de onde, aliás, Malot se origina), e os mineradores de Cevènnes. Numa evolução, é possível ver a personagem ir e vir, delineando cada região, cada grupo, tecendo comentários aqui e acolá acerca da economia e do modo de vida deles, e de como reagiam às apresentações de Vitalis & companhia e, mais tarde, de Renato & companhia (Matias e Capi). De um modo geral, tais reações, da camponesa ao juiz, do jardineiro à rica dama, reflete aquela da fábula da cigarra e da formiga (e eu penso nisso a propósito de uma aula que tive na faculdade, recentemente): as formigas francesas trabalhadoras regalam-se com a música e as pantomimas que a cigarra apresenta para aliviar seu dia-a-dia, mas não deixam de desprezar este trabalho porque consideram que o seu -- seja plantar, cuidar de uma casa, trabalhar numa mineradora, ser um policial, ou declaradamente possuir muito dinheiro -- sem dúvida possui muito mais valor. Porque, embora Malot quisesse criticar algumas das visões da época, este tipo de´relação política e econômica, que reflete tão bem na moral, acaba por escapar pelas brechas da narrativa.

Eventualmente, Renato descobre que é inglês e segue para Londres acompanhado de Matias e Capi, somente para descobrir que pertence a ma família de saqueadores e contrabandistas. A Londres descrita por Malot não difere muito do quadro descrito por Dickens em seus romances de formação eminentemente londrinos, e mediante mais alguns détours é que o leitor descobre que, na verdade, tudo não passa de armação, e que Renato é na verdade o filho raptado da rica Sra. Milligan, numa tentativa desesperada de Jaime Milligan, seu cunhado, fazer com que a fortuna da família viesse parar em suas mãos. Nesse caminho, Renato descobre que Lise conhecera a família Milligan, ainda na França, e passara a morar com ela, e descobre também que a família de salteadores havia sido na verdade responsável pelo seu rapto e viagem clandestina à França, a mando de Jaime.

Como não poderia deixar de ser, num romance em que o sentimentalismo transborda em cada página, tudo termina muito bem, e Renato se casa com Lise, então curada de sua mudez. Matias torna-se concertista internacional, Artur cura-se e se torna jogador profissional de golfe, casando-se com Cristina, a irmã de Matias. Num encontro para celebrar a vida e o batizado do filho de Renato e Lise, todos os envolvidos na história se encontram e uma apresentação musical "à moda antiga" é feita, da qual o dinheiro arrecadado é destinado à criação de um Fundo para a Casa do Pequeno Músico Ambulante. O final feliz de Sem Família está bem ao gosto de jovens e é bem irreal, se pensarmos, mas não deixa de transmitir a mensagem de fé e esperança no respeito às diferenças sociais e econômicas e na esperança de um mundo melhor e mais igualitário.


Fonte de informações sobre o autor: http://es.wikipedia.org/wiki/Hector_Malot (em espanhol)

4 Comentários:

Blogger Cris disse...

Algo que chama atenção nessa publicação da Abril Cultural é que apesar de passarem-se anos na história, Renato foi desenhado sempre da mesma forma, como se tivesse do começo ao fim do livro a mesma idade.

5 de outubro de 2010 às 14:58  
Blogger Fabiana Tavares disse...

De fato, Cris, isso é uma falha, porque o livro mesmo descreve a grande mudança física e o desenvolvimento de Renato, que se transformou, de um menino franzino, em um rapaz vigoroso e muito saudável, graça aos anos de peregrinação com Vitalis e, depois, em busca de ver seus amigos, os irmãos Aquino. Esta é uma bela observação! Este, porém, é um traço que vemos em outras publicações. Isso porque não são todos os ilustradores que lêem as obras, e tampouco entram em contato com editores que as tenham lido. Assim, a ilustração fica a critério do tempo disponível que eles têm para realizá-la.

18 de outubro de 2010 às 12:54  
Blogger Cintia Daflon disse...

Oi Fabiana, encontrei por acaso seu blog. Estou relendo novamente esse liro (acho que é a terceira ou quarta vez). As primeiras vezes que li lembro que chorei horrores com esse livro. Mas mesmo hoje me dá um nó na garganta, mesmo sabendo tudo sobre a história. Adorei sua análise e resumo da história! Cintia.

18 de março de 2013 às 22:54  
Blogger Flávia Pardal disse...

Qdo li esse livro, em meados dos anos 80, me lembro que o nome do personagem era Remigio e não Renato, a mãe de criação se chamava Barberin e não Barberino.

15 de setembro de 2015 às 12:52  

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