Volume 19 - Viagem ao centro da Terra - Júlio Verne
Que o homem faz proveito do seu livre-arbítrio para superar-se e para dominar todo o conhecimento do universo, disso todos sabemos. O interessante é ver como este desejo é retratado ou testemunhado na literatura através dos séculos.
A literatura ocidental conta com narrativas memoráveis, fictícias ou de relatos, sobre aventuras de homens que se superaram, fosse com a ajuda dos deuses, em romances épicos como Odisseia, de Homero, ou em literatura de cunho realista que descreve a sociedade capitalista com uma gama impressionante de personagens, detalhes e situações, como é o caso da Comédia Humana, de Balzac. De uma forma ou de outra, a sociedade tem tido o privilégio de poder contar com as letras não só para testemunhar o grande feito no campo das artes, mas para que o ser humano se dê conta da sua capacidade de ação no mundo e das consequências dessas ações.
É nesse espírito que a coleção Clássicos da Literatura Juvenil apresenta, em seu décimo nono volume, uma faceta literária que não é nem de romance de formação, nem de narrativa de cunho nacionalista, e tampouco romance doméstico. Ao publicar Viagem ao centro da Terra (originalmente publicado em 1864), a editora abril oferece aos seus jovens leitores uma obra traduzida, e não adaptada, densa em narrativa, com menos ilustrações (e mais pesadas e escuras como convém ao ambiente narrado na história), e que descortina ante os olhos do leitor ávido a mais fantástica, a mais extraordinária das aventuras até então narradas: a trajetória de ida e de volta de um geólogo alemão, professor catedrático de universidade renomada, a nada menos do que o centro do planeta.
O romance, contado em primeira pessoa pela personagem Axel, sobrinho do professor Otto Lidenbrock, parte do dia em que o excêntrico alemão, um dos maiores especialistas em mineralogia do mundo e também colecionador de livros raros, depara-se com um exemplar de um livro escrito por um alquimista islandês do século XVI, do qual cai um pequeno mapa cuja mensagem em runas explica, ao ser decifrada, que a aventura de ida e de volta ao centro da Terra havia sido realizada por ele com sucesso. Para realizar a mesma façanha, o professor faz uso de sua influência social e angaria cartas de recomendação ao governador da Islândia e segue para lá com seu sobrinho. Ali, contrata um calmo, silencioso, pragmático e, felizmente, fisicamente avantajado guia, de nome Hans e, de posse dos instrumentos de medição de temperatura, pressão, altitude e latitude, e dos mais óbvios instrumentos e víveres de uma longa expedição, partem para o vulcão adormecido onde o mapa indicava que estaria a entrada para o centro da Terra.
A narrativa de Verne é, ao mesmo tempo, uma mistura excelente de um palavreado datado, de um mundo específico de uma Europa novecentista, junto a uma descrição incrível das façanhas realizadas pelo trio, intercaladas de momentos de emoção e do mais puro marasmo. No caminho, o leitor se dá conta do vasto conhecimento histórico e científico que o autor teve de acumular, selecionar e organizar para descrever de forma convincente não só o caminho interior pelas minas, declives, e terrenos, mas sobretudo a capacidade de argumentação e de convencimento atribuída ao notável Lidenbrock, a quem é conferida toda a aura de sabedoria e de autoridade da "realidade" que os cerca.
Esta realidade é, porém, tudo menos o que o ser humano da época poderia comprovar. A primeira tese que Verne, através de Lidenbrock, contesta, é a de que o centro do planeta seja absurdamente quente. Valendo-se das descobertas do químico inglês Davy Humphry -- ou atribuindo-lhe o que dizia --, a voz do professor alemão diz concordar com o britânico ao explicar que, sob certas condições químicas, elétricas e físicas, a temperatura da Terra não seria alta em seu centro, porque do contrário ela derreteria indefinidamente até que consumisse o planeta. Esse é o argumento básico para justificar a possibilidade humana de uma expedição por um caminho tortuoso através de léguas e léguas, iluminado por uma lanterna halogênica, que não explode em gases mais insólitos, para iluminar o caminho dos três aventureiros, até que encontrem não só uma torrente de água fervente, como também, e de forma mais extraordinária, um mundo prehistórico conservado sob mais de quarenta léguas de distância da crosta terrestre. Este é um mundo onde um oceano de 600 léguas de raio abriga seres marinhos da era quaternária, como baleias e peixes que não enxergam, onde o solo faz brotar cogumelos gigantes, de mais de três metros de altura e de expansão do chapéu, e onde encontra-se uma floresta que desafia qualquer bioma, porque agrupa no mesmo ambiente árvores temperadas, tropicais e setentrionais, e em cujo ambiente eles virão a descobrir nada mais, nada menos do que mastodontes pastoreados por seres humanos de 4 metros de altura. Todo o ambiente descrito completa seu aspecto fantástico porque está abrigado sob um "céu" iluminado pela enorme carga elétrica da energia que ali está acumulada há milhares de anos, fruto da composição química das rochas e dos minerais do interior do planeta, e que gera uma luminescência semelhante à aurora boreal, sobre um mar que, ainda que distante da crosta, sofre as influências do ciclo planetário e das elipses terrenas e, por isso, cause marés altas e baixas -- o que lhes permite, por exemplo, cruzar este insólito ambiente e ali encontrem o testemunho do islandês seiscentista: uma adaga espanhola enferrujada e amassada, com que marcara a rocha com suas iniciais.
Interessante é o leitor acompanhar o modo como Verne constrói a verossimilhança, misturando-a às alucinações, sonhos, exaustão e inúmeros questionamentos da personagem narradora que é o jovem Axel: a certa altura, quando explodem um rochedo (pois levam pólvora consigo) e sua jangada é sugada pelo negro abismo aberto na explosão, e passam a ser empurrados água e lava acima, o rapaz se pergunta se aquilo é possível, e como conseguem sobreviver à brusca mudança da temperatura de 27,3°C para a de cerca de 70°C da lava que só não consome a madeira fossilizada da embarcação porque ali se forma uma crosta protetora, e como sairão os três vivos dali. O dado é que o vulcão os expele, seminus, semiconscientes, não na Islândia, mas na Itália, a cinco mil quilômetros de onde haviam iniciado sua jornada. Daí para um final renomado, em que Hans volta à sua terra natal, o professor se torna famoso e Axel se casa com sua prima Gräuben (mencionada no início do romance e sempre lembrada pelo narrador ao longo de sua aventura), é questão de dois capítulos que servem para encerrar o romance -- porque seu valor está na trajetória, e não no desfecho propriamente dito.
É importante explicar, para o leitor que não teve a oportunidade de aprender um pouco mais sobre Verne, que o autor francês viveu em época de grande produção literária que transitava do romantismo para o realismo, e manteve contato com muitos cientistas, naturalistas e estudiosos de seu tempo. É quase desnecessário dizer que ele inaugurou a nossa ficção científica, e que seu espírito visionário anteviu muitas das coisas que a humanidade logo conheceria, como o submarino e a viagem à Lua, mas disso volto a falar em outra ocasião. Basta, por hora, pensar que devemos Star Wars e Blade Runner a ele e, mais ainda, nas suas últimas publicações, a preocupação maior: o homem pode até se superar, mas o que fará, como fará e o que acontecerá com a a humanidade quando colocar seus conhecimentos à prova e então em funcionamento? Não tenho resposta a estas questões mas, assim como Verne, rogo para que sejam experimentados de modo a nos beneficiar sem impactar mais ainda a natureza, e que o homem aprenda, afinal, a medida entre o possível e o sensato.
Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Julio_Verne
A literatura ocidental conta com narrativas memoráveis, fictícias ou de relatos, sobre aventuras de homens que se superaram, fosse com a ajuda dos deuses, em romances épicos como Odisseia, de Homero, ou em literatura de cunho realista que descreve a sociedade capitalista com uma gama impressionante de personagens, detalhes e situações, como é o caso da Comédia Humana, de Balzac. De uma forma ou de outra, a sociedade tem tido o privilégio de poder contar com as letras não só para testemunhar o grande feito no campo das artes, mas para que o ser humano se dê conta da sua capacidade de ação no mundo e das consequências dessas ações.
É nesse espírito que a coleção Clássicos da Literatura Juvenil apresenta, em seu décimo nono volume, uma faceta literária que não é nem de romance de formação, nem de narrativa de cunho nacionalista, e tampouco romance doméstico. Ao publicar Viagem ao centro da Terra (originalmente publicado em 1864), a editora abril oferece aos seus jovens leitores uma obra traduzida, e não adaptada, densa em narrativa, com menos ilustrações (e mais pesadas e escuras como convém ao ambiente narrado na história), e que descortina ante os olhos do leitor ávido a mais fantástica, a mais extraordinária das aventuras até então narradas: a trajetória de ida e de volta de um geólogo alemão, professor catedrático de universidade renomada, a nada menos do que o centro do planeta.
O romance, contado em primeira pessoa pela personagem Axel, sobrinho do professor Otto Lidenbrock, parte do dia em que o excêntrico alemão, um dos maiores especialistas em mineralogia do mundo e também colecionador de livros raros, depara-se com um exemplar de um livro escrito por um alquimista islandês do século XVI, do qual cai um pequeno mapa cuja mensagem em runas explica, ao ser decifrada, que a aventura de ida e de volta ao centro da Terra havia sido realizada por ele com sucesso. Para realizar a mesma façanha, o professor faz uso de sua influência social e angaria cartas de recomendação ao governador da Islândia e segue para lá com seu sobrinho. Ali, contrata um calmo, silencioso, pragmático e, felizmente, fisicamente avantajado guia, de nome Hans e, de posse dos instrumentos de medição de temperatura, pressão, altitude e latitude, e dos mais óbvios instrumentos e víveres de uma longa expedição, partem para o vulcão adormecido onde o mapa indicava que estaria a entrada para o centro da Terra.
A narrativa de Verne é, ao mesmo tempo, uma mistura excelente de um palavreado datado, de um mundo específico de uma Europa novecentista, junto a uma descrição incrível das façanhas realizadas pelo trio, intercaladas de momentos de emoção e do mais puro marasmo. No caminho, o leitor se dá conta do vasto conhecimento histórico e científico que o autor teve de acumular, selecionar e organizar para descrever de forma convincente não só o caminho interior pelas minas, declives, e terrenos, mas sobretudo a capacidade de argumentação e de convencimento atribuída ao notável Lidenbrock, a quem é conferida toda a aura de sabedoria e de autoridade da "realidade" que os cerca.
Esta realidade é, porém, tudo menos o que o ser humano da época poderia comprovar. A primeira tese que Verne, através de Lidenbrock, contesta, é a de que o centro do planeta seja absurdamente quente. Valendo-se das descobertas do químico inglês Davy Humphry -- ou atribuindo-lhe o que dizia --, a voz do professor alemão diz concordar com o britânico ao explicar que, sob certas condições químicas, elétricas e físicas, a temperatura da Terra não seria alta em seu centro, porque do contrário ela derreteria indefinidamente até que consumisse o planeta. Esse é o argumento básico para justificar a possibilidade humana de uma expedição por um caminho tortuoso através de léguas e léguas, iluminado por uma lanterna halogênica, que não explode em gases mais insólitos, para iluminar o caminho dos três aventureiros, até que encontrem não só uma torrente de água fervente, como também, e de forma mais extraordinária, um mundo prehistórico conservado sob mais de quarenta léguas de distância da crosta terrestre. Este é um mundo onde um oceano de 600 léguas de raio abriga seres marinhos da era quaternária, como baleias e peixes que não enxergam, onde o solo faz brotar cogumelos gigantes, de mais de três metros de altura e de expansão do chapéu, e onde encontra-se uma floresta que desafia qualquer bioma, porque agrupa no mesmo ambiente árvores temperadas, tropicais e setentrionais, e em cujo ambiente eles virão a descobrir nada mais, nada menos do que mastodontes pastoreados por seres humanos de 4 metros de altura. Todo o ambiente descrito completa seu aspecto fantástico porque está abrigado sob um "céu" iluminado pela enorme carga elétrica da energia que ali está acumulada há milhares de anos, fruto da composição química das rochas e dos minerais do interior do planeta, e que gera uma luminescência semelhante à aurora boreal, sobre um mar que, ainda que distante da crosta, sofre as influências do ciclo planetário e das elipses terrenas e, por isso, cause marés altas e baixas -- o que lhes permite, por exemplo, cruzar este insólito ambiente e ali encontrem o testemunho do islandês seiscentista: uma adaga espanhola enferrujada e amassada, com que marcara a rocha com suas iniciais.
Interessante é o leitor acompanhar o modo como Verne constrói a verossimilhança, misturando-a às alucinações, sonhos, exaustão e inúmeros questionamentos da personagem narradora que é o jovem Axel: a certa altura, quando explodem um rochedo (pois levam pólvora consigo) e sua jangada é sugada pelo negro abismo aberto na explosão, e passam a ser empurrados água e lava acima, o rapaz se pergunta se aquilo é possível, e como conseguem sobreviver à brusca mudança da temperatura de 27,3°C para a de cerca de 70°C da lava que só não consome a madeira fossilizada da embarcação porque ali se forma uma crosta protetora, e como sairão os três vivos dali. O dado é que o vulcão os expele, seminus, semiconscientes, não na Islândia, mas na Itália, a cinco mil quilômetros de onde haviam iniciado sua jornada. Daí para um final renomado, em que Hans volta à sua terra natal, o professor se torna famoso e Axel se casa com sua prima Gräuben (mencionada no início do romance e sempre lembrada pelo narrador ao longo de sua aventura), é questão de dois capítulos que servem para encerrar o romance -- porque seu valor está na trajetória, e não no desfecho propriamente dito.
É importante explicar, para o leitor que não teve a oportunidade de aprender um pouco mais sobre Verne, que o autor francês viveu em época de grande produção literária que transitava do romantismo para o realismo, e manteve contato com muitos cientistas, naturalistas e estudiosos de seu tempo. É quase desnecessário dizer que ele inaugurou a nossa ficção científica, e que seu espírito visionário anteviu muitas das coisas que a humanidade logo conheceria, como o submarino e a viagem à Lua, mas disso volto a falar em outra ocasião. Basta, por hora, pensar que devemos Star Wars e Blade Runner a ele e, mais ainda, nas suas últimas publicações, a preocupação maior: o homem pode até se superar, mas o que fará, como fará e o que acontecerá com a a humanidade quando colocar seus conhecimentos à prova e então em funcionamento? Não tenho resposta a estas questões mas, assim como Verne, rogo para que sejam experimentados de modo a nos beneficiar sem impactar mais ainda a natureza, e que o homem aprenda, afinal, a medida entre o possível e o sensato.
Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Julio_Verne
3 Comentários:
Este acredito ser imperdível, um dos melhores clássicos, junto com 20.00 léguas do Verne e A máquina do tempo do Wells. Nenhuma criança devia terminar a adolescência sem conhecer estes clássicos. É um crime contra a formação cultural de um jovem ser humano!! Parabéns pela iniciativa e excelência nos comentários.
Julio Verne é "o cara", rsrsrs. Muito bom, mesmo. Uma prima me disse que ou ele tinha voltado no tempo, ou era extraterrestre, para saber de tudo o que sabia. De qualquer forma, está entre aqueles que devemos ver, e se não for na adolescência, que seja em algum momento em que a leitura faça a pessoa repensar sua postura no mundo. Beijos!
Verne permanece o mestre absoluto até os dias atuais. Viagem ao centro da terra, além de um de seus 5 melhores romances, é um manual de como se escrever uma história cativante.
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