Coleção Clássicos da Literatura Juvenil
Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
terça-feira, 19 de outubro de 2010
Volume 40 - Heidi - Johanna Spyri
Heidi é uma das poucas obras alemãs dedicadas ao público infantil e juvenil que figura na coleção Clássicos da Literatura Juvenil. Escrito por Johanna Spyri e publicado em 1880, a história trata de uma garota órfã que vai morar com a tia mas que, por falta de recursos financeiros, acaba sendo enviada à casa do avô, nos alpes suíços. Ali, conhece um outro estilo de vida e faz amizade com Peter, o pastor de cabras.
Dos cinco aos oito anos, Heidi não só cresce feliz e sadia, no ambiente pastoril de uma Suíça alpina oitocentista, em um casebre pobre, mas distribui sorrisos a todos a quem conhece e principalmente amor ao avô que, antes, havia passado anos e anos amargurado, de mal com o vilarejo, cujos habitantes nada faziam além de suposições e fofocas a seu respeito. Isso porque, vindo do estrangeiro com um filho pequeno, não se comunicara com ninguém, e o isolamento fôra-lhe prejudicial após a morte de seu filho.
Aos poucos, Heidi -- que, na verdade, chama-se Adelaide, como a mãe falecida -- conquista o avô, mas ela se vê repentinamente presa nos planos de sua tia Deti, que volta para buscá-la e colocá-la como pequena dama de companhia de Clara, uma menina de doze anos que mora em Frankfurt e é paralítica, e cujo pai é um viúvo muito rico que raramente fica em casa. O período de conhecimento da cidade grande e do processo de adaptação de Heidi tem seus momentos engraçados, na fala de um narrador onde tudo nos alpes é grandioso e muito iluminado, mas onde tudo na cidade é triste e sombrio, numa construção de atmosfera feita muito claramente para construir contrastes de ambientes. Embora Heidi goste muito de Clara e eventualmente aprenda com ela e com a avó dela muitas coisas boas e práticas, Heidi definha silenciosamente de saudade dos Alpes e de seus amigos e avô, até que o pai de Clara retorne de uma viagem de negócios e perceba o que está acontecendo com a menina.
Uma vez de volta às montanhas, Heidi visita seus amigos e leva-lhes presentes. Dentre eles, o maior é a habilidade de poder ler para a avó de Pedro, porque a velhinha, já cega, sente falta dos hinos religiosos. Na esteira da formação cristã protestante alemã, a autora constrói a trama, e assim a história preferida de Heidi é a do filho pródigo, numa clara alusão ao avô.
Do mesmo modo, o processo de alfabetização, tal como narrado, faz bastante jus ao que conhecemos dos métodos dos séculos XVIII e XIX, antes da grande reforma em prol das crianças pobres. Aqui, qualquer vadiagem ou negação a aprender, por qualquer que seja o motivo, é ameaçada. Há versos que ensinam o alfabeto na base da ameaça, e esse modelo era na época tido como um grande modo de ensinar às crianças.
O terceiro momento é reservado à série de visitas que o médico da cidade, a avós de Clara, o api de Clara e a própria Clara fazem aos Alpes um ano após o retorno da menina às montanhas. Ali, por conta do extremo cuidado do avô para com a mocinha e também devido ao ciúme de Pedro, que já não pode ficar com Heidi só para si durante od ia inteiro, a cadeira de rodas é empurrada para despencar morro abaixo, numa tentativa de fazer com que a menina vá embora. O feitiço, porém, vira-se contra o feiticeiro, e Clara conta com a ajuda de Pedro e de Heidi para começar a andar.
Nesse romântico claramente instrucional, o avô reconcilia-se com Deus e com a sociedade, a paralítica volta a andar, o pai que perdeu uma filha ganha a companhia de outra criança, e Heidi se vê financeiramente amparada pelo médico e pelo pai de Clara. Costurando a trama vem a figura da avó de Clara, que ensina o poder do amor, da fé e do perdão de Deus para com seus filhos. É isso o que este romance, que inaugura uma categoria no gênero infantil e juvenil, faz: prende-nos a um sonho já não possível de cumprir, e onde a realidade é mais perfeita do que nós mesmos esperamos. Se, de alguma forma, ela nos resgata da realidade crua e fria de hoje, com tantas opções e sem ninguém em quem confiar para deixar a porta de uma casa aberta, ela cumpre seu papel histórico e ideológico.
Fonte de informações sobre a autora: http://pt.wikipedia.org/wiki/Johanna_spyri
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
Volume 39 - Winnetou - Karl May
Antes de escrever histórias no último quartil do século XIX, quando a Alemanha proliferava seu desenvolvimento literário, o jovem alemão, filho de uma família de tecelães com numerosos irmãos e muitas mortes em decorrência da pobreza e da falta de condições de cuidados com suas crianças, já tinha se formado professor, tido seu título cassado em consequência de roubo, e anos e anos de prisão e trabalhos forçados por conta de seus atos ilegais, até que tivesse sua alma, por assim dizer, resgatada por um missionário que visitava os detentos nas cadeias.
De ladrão a homem recuperado, Karl May tornou-se escritor e, aproveitando-se da febre literária e do desenvolvimento alemão do segundo Reich, escreveu inúmeras histórias que desejavam resgatar para os europeus o espírito romântico de bravura e heroísmo, em terras indômitas, para jovens leitores, ávidos por conhecer um lado da história humana a que agora, diante da urgência em destacar a pátria e a formação de mão-de-obra, já não viviam.
Desse modo é que a coleção Clássico da Literatura Juvenil apresenta Winnetou, o jovem guerreiro, cacique dos apaches, que o narrador em primeira pessoa diz ter sido o último dos grandes e honrados guerreiros indígenas dos Estados Unidos. Nesta adaptação de Maria Aparecida P. de Freitas, um alemão que viaja aos Estados Unidos em busca de aventuras no oeste a ser desbravado acaba se tornando preceptor (professor de crianças e jovens) de uma família alemã instalada há alguns anos no território, quando conhece Sam Hawkes. Este, embora muito maltratado pela vida no oeste, afeiçoa-se a ele e o treina, sem que este saiba, para a vida no território hostil. É devido à sua grande habilidade com o manejo de armas brancas e de fogo e de sua grande força que o jovem alemão se torna conhecido como Mão-de-Ferro, e logo no início da narrativa, quando está em missão de demarcação de terras para a construção de uma estrada de ferro, que vem a conhecer o cacique Intschu-Tschuna e seu valoroso filho Winnetou. Numa tentativa de estabelecer a paz entre brancos e índios, o jovem e seu amigo tentam conversar com os índios e com Klekih-Petra -- ou "pai branco" --, um senhor já idoso e também alemão que havia se radicado em terras indígenas, em defesa dos povos de pele vermelha contra a sanha branca de invadir suas terrase pilhar seus bens. Ocorre, porém, de haver desavença e de um branco matar o senhor alemão, e a guerra se estabelece. Em meio a isso, Intschu-Tschuna e Winnetou são capturados e Mão-de-Ferro os liberta, e depois de mais aventuras, o branco acaba tornando-se irmão de Winnetou.
A aventuras, narradas num estilo episódico, é repleta de lutas, perseguições, capturas, libertações se reféns e justiça feita à bala e à faca. Nesse ínterim, morrem Inschu-Tschuna e sua filha, Nscho-Tschi, tida como a bela flor da tribo. À morte do pai e da irmã, Winnetou segue na captura do assassino, o branco Santer, mas nas diversas vezes em que se vê à sua caça, este se lhe escapa, pois conta também com a ajuda da tribo dos kiowas, a quem presta favores.
O livro apresentado ao leitor é na verdade uma adaptação da somatória dos quatro volumes publicados por May com o nome Winnetou, e segue com muitas outras aventuras, que envolvem desde a ida do alemão a Nova York e seu serviço como detetive, até suas idas à Alemanha e ao seu retorno ao território do oeste, onde ele se envolve em resgates de trens assaltados por bandos de indígenas liderados por bandidos brancos, até a ajuda oferecida por ele e pelo irmão índio a uma colônia cristã de alemães radicados no oeste. É, aliás, durante o conhecimento que trava com os colonos de Helldorf que Winnetou decide converter-se ao cristianismo, comovido que se vê diante do cântico da "Ave-Maria" e da crença que tem num Pai celestial de amor e de união, e não de guerra, como é o Grande Espírito guerreiro protetor dos indígenas. Após tantas aventuras, é justamente ao resgatar os colonos de Helldorf das garras de bandidos brancos que Winnetou tomba, baleado pelas costas. Morre ao ouvir o cântico da santa, mas antes faz o escritor Carlos -- porque o narrador revela-se como Carlos, escritor (tal como o autor, o que significa que a personagem é um alter ego do autor) -- prometer que iria ao túmulo de seu pai e de sua irmã e, perto deles, desenterraria o testamento a ser lido para a sua tribo apache. É durante esta aventura que Carlos, o Mão-de-Ferro, é capturado por Santer e pelos kiowas, mas liberta-se e vai atrás do mortal inimigo de Winnetou, na jura de vingar as mortes dos amigos indígenas e de recuperar o testamento que Santer consegue roubar. Eventualmente, é claro, ele o alcança e Santer, vítima de sua própria cobiça e insensatez, morre, levando consigo o testamento dos apaches e o segredo dos tesouros em ouro e pedras preciosas que Winnetou revelava na carta enterrada, e de que os apaches só faziam uso quando iam às cidades dos brancos e tinham a necessidade de pagar pelo que queriam ou precisavam. "Lembre-se, meu irmão, o brilho e dos diamantes é o próprio fulgor da morte que, se não destrói o corpo, arrasa o espírito!", é o que diz Winnetou a Mão-de-Ferro antes de morrer, numa mostra da visão romancizada do autor, segundo a qual o indígena é puro, corajoso e sempre digno.
Nesta história, ao mesmo tempo em que se deleita com a série de aventuras, o leitor se depara com a linguagem rebuscada, típica ainda do início do século XIX, e com um conhecimento topográfico, climático e de nações e tribos indígenas que com muita propriedade dão o caráter verossímil à narração. Entretanto, curioso é saber que, quando o livro foi lançado (primeiro em episódios publicados em magazines e, depois, em edições de livros), Karl May não havia sequer pisado em solo norte-americano, quanto mais conhecer tribos, aventureiros e desbravado terras. Em sua experiência literária, tinha-se valido de suas leituras das obras de escritores como James Fenimore Cooper (que apareceu nesta coleção com O Último dos moicanos), bem como de livros de história, mapas e notícias de jornais para constituir o que se torna uma narrativa envolvente e muito bonita da figura do índio e de seu valor na nação americana. Soma-se a esta pesquisa a criatividade de May, e então o leitor tem em mãos esta obra que pode não ser muito lida hoje, mas inspira ainda a ideologia americana de nação e a crítica ao falso ideologismo, e que é, por exemplo, lembrada por pessoas do calibre do cineasta Quentin Tarantino, que cita Winnetou em Bastardos Inglórios, numa mostra de que o tema é atual e sempre ideológico, esteja ele investido ou não de um caráter romântico.
Fonte de informações sobre o autor (em inglês): http://en.wikipedia.org/wiki/Karl_May
terça-feira, 5 de outubro de 2010
Volume 38 - O pequeno Lorde - Frances Hodgson Burnett
Frances Hodgson Burnett é, nos dias de hoje, mais conhecida por sua obra O jardim secreto, que foi transformada em filme nos anos 1990, mas sua fama atravessou os mares quando ela publicou O pequeno lorde, que a coleção Clássicos da Literatura Juvenil apresenta aos leitores em seu trigésimo-oitavo volume.
Publicado pela primeira vez em 1886, o livro conta a história de Cedric Errol, o menininho de sete anos órfão de um pai que era o terceiro filho de um conde inglês, e de uma mãe americana, e que de repente vê sua vida mudada porque o avô, a quem jamais havia conhecido, manda buscá-lo nos Estados Unidos para que viva com ele e aprenda sobre sua linhagem e sua importância, e passe a ser o Lorde Fauntleroy, dono das terras do avô quando este viesse a falecer.
O avô era, na verdade, movido pela solidão e pelo orgulho de sua linhagem, e não por amor. Solitário, ranzinza e amargurado, tendo morrido os três filhos, chama o neto e a mãe, mas recusa-se a conhecer esta, por acreditar que os americanos não passavam de gente baixa, sem educação e cuja personalidade era carregada de interesse e de ganância. Não sabia ele que não só sua nora era a mais digna, educada e recatada das damas, mas incutia no filho o orgulho de ser filho de seu pai e o amor pela virtude, pela verdade e pela caridade, além de um otimismo sem fronteiras. É assim que, vendo-se dono de uma pequena soma de dinheiro ainda nos Estados Unidos, antes de partir, Cedric ajuda a seus amigos, o vendeiro republicano, a família de sua ama de leite, e o engraxate Dick, de quem é também amigo, mas nada compra para si.
O amor e a natural expansão de Cedric, que desconhece o verdadeiro motivo pelo qual o avô o leva à Inglaterra pelas mãos do advogado da família, acabam não só por desarmar o velho homem de sua amargura e de sua descrença na humanidade, mas por curá-lo e também por distribuir com justiça a ajuda aos mais empregados necessitados do condado. Eventualmente, o velho lorde acaba conhecendo sua nora e reconhecendo que ela era a melhor das damas. Entendendo que o neto, com quem morava, jamais deixaria de amar a mãe por mais que se lhe dessem ou com ele estivessem (pois o avô tentara, de primeira, comprá-lo com brinquedos e livros), o homem convida a nora a morar com eles no castelo, posto que ela morava nas propriedades, próximo ao castelo desde que se mudara para a Inglaterra, mas não com o filho.
Não poderia, contudo, deixar de haver o contraponto da felicidade e da lição de vida que o pequeno ensina a todos, espalhando o amor, a justiça e a caridade. A certa altura da história, quando já era reconhecido por todos do condado como o pequeno lorde Fauntleroy, Cedric vê seu posto ameaçado por um repentino herdeiro, que seria filho do primogênito do velho conde. A situação viria a tomar proporções de manchetes internacionais e, assim, nos Estados Unidos, seus amigos saberiam do drama, e teriam condições de ver, pela foto dos jornais, que a mãe do suposto herdeiro era senão a ex-cunhada de Dick, pilantra de marca maior que de fato havia se envolvido com o filho do conde, mas cujo filho era na verdade resultado de sua relação com Ben, irmão de Dick. Em tempo, a farsa é desmascarada e a paz passa a reinar nessa história escrita para crianças.
Há, nesta história de amor familiar, dois aspectos que se pode comentar. O primeiro deles é, certamente, a questão política da rivalidade entre os valores históricos ingleses versus os valores de igualdade pregados pela república norte-americana, aqui colocados por uma autora que havia nascido inglesa e que, ainda jovem, havia se mudado para os Estados Unidos. No início, incute a personagem do vendeiro com toda a gana contra os ingleses e seus preconceitos contra a linhagem, a exploração, a desigualdade entre os britânicos, quando em seu país todos tinham chances iguais e poderiam, se quisessem, candidatar-se a presidente. Porém, com o desenrolar da história, conforme Cedric se inteirava de sua linhagem e da realidade de sua posição e das famílias que viviam no condado, ele ia entendendo que a desigualdade e a injustiça dependiam principalmente da personalidade e do modo de governar, e não do mero fato de ser inglês ou de se estar na Inglaterra. E, sendo a história produto do trabalho de uma filha da era vitoriana, em que o expansionismo inglês estava ainda a toda na Ásia, não poderia ser diferente.
O segundo aspecto que chama a atenção para este livro é o modo como o caráter da personagem Cedric Errol, o pequeno lorde Fauntleroy, é construído, bem como o enredo. Digo isso porque, ao ler a história, não pude deixar de estabelecer relações óbvias com Pollyanna, de Eleanor Holdgman Porter, publicado em 1911 e cuja história fala de uma órfã que vai morar com a amargurada e reclusa tia Polly, uma mulher rica que, à custa da inocência, do amor e da crença de sua sobrinha na justiça e na caridade, passa a fazer caridade e a atender a diversas famílias da região, para finalmente perceber que se torna uma mulher completamente diferente e mais feliz, por amor da sobrinha, sempre tão otimista e querida por todos, e que a transforma pouco a pouco num ser cujo amor e cuja compaixão se tornam evidentes. Imagino, na verdade, que haja estudos comparativos de ambos os enredos, e embora os contextos sejam diferentes e não haja a situação política em Pollyanna, obras como essas -- inspiradas por Frances H. Burnett, são ainda hoje fundamentais para a formação da criança, já que a necessidade de formar pessoas justas, amorosas e caridosas, independentemente de onde vivam, jamais morre.
Fonte de informações sobre a autora (em inglês): http://en.wikipedia.org/wiki/Frances_Hodgson_Burnett