Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Volume 20 - Chamado Selvagem - Jack London

Uma das características positivas da coleção Clássicos da Literatura Juvenil é apresentar ao seu público leitor diferentes mundos e diferentes gêneros de literatura. De uma aventura no mar, passa-se ao romance de capa e espada, então a um mundo em desenvolvimento na América, para ir à velha Europa vitoriana e, depois, ao mitológico mundo da Grécia, e de volta à Europa da rainha, das cruzadas, ou ainda à América da Guerra de Secessão. Tais foram as aventuras pelas quais o leitor passou até chegar ao vigésimo volume, Chamado Selvagem.

Originalmente publicado em 1903, Chamado Selvagem narra a história do cão mestiço de são bernardo com pastor escocês, chamado Buck, do momento em que é raptado do lar, numa fazenda de Santa Fé, estado da Califórnia, e é vendido como cão de tração e transporte de trenó no Alasca. Nesse processo, Buck desaprende civilidade, servidão cega e medo, porque passa, como conta o narrador em terceira pessoa, por um aprendizado à base do porrete e da dentada, até subjugar o líder e tornar-se ele mesmo o líder da matilha que conduz o trenó de transportes por milhares de quilômetros através do gelo. No decorrer de sua vida de cão de transporte, vê o que a ganância e a miséria humana é capaz de fazer não só aos cães, mas aos próprios humanos, que por ouro -- pois estavam todos na corrida do ouro em Klondike, no Alasca -- chegam às raias do desespero por comida, por água e por um pouso ao corpo cansado, sem com isso querer dizer que pensam e cuidam da mesma forma dos cães que os servem.

O que London coloca diante dos olhos do leitor é uma vida dura, e o ensinamento através da violência pode ser muito questionado atualmente. A questão é não se esquecer que, na virada do século XIX para o XX, não se falava em direitos humanos, nem em direito dos animais, e nem mesmo em sociedade civilizada, e o que poderia ser entendido como barbárie é, como ele bem coloca, resultado da tentativa de sobrevivência num local inóspido e que não recepciona de modo algum a chegada de humanos outros que não os indígenas que ali já viviam. É como o narrador coloca, a um dado momento, quando Buck aprende a roubar comida: "Marcou sua adaptabilidade e capacidade para se ajustar a novas condições de vida, a falta do que significaria morte rápida e terrível. Marcou, além disto, a decaída ou esfacelamento de sua natureza moral, coisa vã e inconveniente na impiedosa luta pela existência. Funcionava bem nas terras do sul, sob a lei do amor e da camaradagem, respeitar a propriedade privada e sentimentos pessoais; mas nas terras do norte,sob a lei do porrete e da dentada, quem levasse em consideração tais coisas era tolo e, enquanto as respeitasse, deixaria de prosperar" (LONDON, 1903; 1972: 36).

Ao longo da narrativa, torna-se claro que o importante não é, pois, questionar a moralidade, o servilismo ou a "civilidade" de Buck, dado que ele se encontra numa terra em que somente os mais fortes sobrevivem. O livro trata, na verdade, da transformação deste cão domesticado em um verdadeiro cão selvagem, que atende ao apelo da natureza, e aprende a ser forte, a sobressair-se da dor, do torpor, do medo, da fome, do cansaço, e tornar-se forte e uno com o chamado natural e selvagem: o chamado da ancestralidade, que o faz tornar-se quase um lobo, a unir-se com eles no final do livro, quando finalmente já tenha passado pela experiência de sentir verdadeiro amor pelo homem não por servidão, por reconhecimento, mas por ser tratado como um igual por um deles, quando se encontra em situação de morte iminente. Quando John Thornton o salva de morrer de cansaço, de inanição e de surra de pauladas, ele se recupera e se torna amigo fiel e dividido entre o amor que sente pelo mineirador e entre o apelo da natureza que, em semivigília, vê através das fagulhas das fogueiras, em sombras de homens ancestrais, ou através dos uivos que ouve na floresta. Somente com a morte de seu amigo -- por emboscada de indígenas em território quase inexplorado -- é que vinga a morte do homem e encontra aí a oportunidade perfeita de finalmente atender ao chamado do sangue, da natureza e da ancestralidade, de forma que se junta à matilha de lobos selvagens, sem nunca esquecer a lição que aprende com os homens: a de que eles podem dobrar sua vontade pela violência ou pelo verdadeiro amor.

Chamado Selvagem fez estrondoso sucesso ainda na época de seu lançamento, e confirmou uma vida de produção literária na curta carreira de Jack London, o menino que cresceu pobre, trabalhou nas mais diversas profissões, foi preso por vadiagem, explorou o Klondike -- de onde saiu inspiração para este romance, embora ele tenha reconhecido que outra obra também lhe tenha inspirado --, transformou-se de socialista em republicano e decidiu que sua capacidade criativa e de produção escrita o tiraria da miséria e faria sua fortuna, porquanto literatura para ele estivesse ligada à produção e ao mundo do trabalho. Muitas vezes questionado sobre isso, London soube lidar com as críticas em meio às viagens que fazia e às reviravoltas em sua vida pessoal e soube aproveitar o grande movimento das revistas literárias tão em voga no início do século XX, nos Estados Unidos, até que fosse encontrado morto na varanda de sua casa, aos 40 anos, no que o legista descreveu como uremia e cólica renal. Tenha sido isso ou suicídio, como alguns estudiosos depois afirmaram, o escritor, nascido John Griffith London, não precisou testemunhar a crise catastrófica de 1929 para saber a extensão e a força dos braços do sistema capitalista, e nem precisou fazer campanha contra ou a favor de política e economia, ou ater-se a questões morais e religiosas para estabelecer seu ponto de vista, e talvez por isso mesmo seja, até hoje, tão controverso e ainda assim, pela força de sua criação literária, tão lido, estudado e visto nas produções cinematográficas e televisivas que existem sobre suas obras.

Fonte de informações sobre o autor:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jack_London

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Volume 19 - Viagem ao centro da Terra - Júlio Verne

Que o homem faz proveito do seu livre-arbítrio para superar-se e para dominar todo o conhecimento do universo, disso todos sabemos. O interessante é ver como este desejo é retratado ou testemunhado na literatura através dos séculos.

A literatura ocidental conta com narrativas memoráveis, fictícias ou de relatos, sobre aventuras de homens que se superaram, fosse com a ajuda dos deuses, em romances épicos como Odisseia, de Homero, ou em literatura de cunho realista que descreve a sociedade capitalista com uma gama impressionante de personagens, detalhes e situações, como é o caso da Comédia Humana, de Balzac. De uma forma ou de outra, a sociedade tem tido o privilégio de poder contar com as letras não só para testemunhar o grande feito no campo das artes, mas para que o ser humano se dê conta da sua capacidade de ação no mundo e das consequências dessas ações.

É nesse espírito que a coleção Clássicos da Literatura Juvenil apresenta, em seu décimo nono volume, uma faceta literária que não é nem de romance de formação, nem de narrativa de cunho nacionalista, e tampouco romance doméstico. Ao publicar Viagem ao centro da Terra (originalmente publicado em 1864), a editora abril oferece aos seus jovens leitores uma obra traduzida, e não adaptada, densa em narrativa, com menos ilustrações (e mais pesadas e escuras como convém ao ambiente narrado na história), e que descortina ante os olhos do leitor ávido a mais fantástica, a mais extraordinária das aventuras até então narradas: a trajetória de ida e de volta de um geólogo alemão, professor catedrático de universidade renomada, a nada menos do que o centro do planeta.

O romance, contado em primeira pessoa pela personagem Axel, sobrinho do professor Otto Lidenbrock, parte do dia em que o excêntrico alemão, um dos maiores especialistas em mineralogia do mundo e também colecionador de livros raros, depara-se com um exemplar de um livro escrito por um alquimista islandês do século XVI, do qual cai um pequeno mapa cuja mensagem em runas explica, ao ser decifrada, que a aventura de ida e de volta ao centro da Terra havia sido realizada por ele com sucesso. Para realizar a mesma façanha, o professor faz uso de sua influência social e angaria cartas de recomendação ao governador da Islândia e segue para lá com seu sobrinho. Ali, contrata um calmo, silencioso, pragmático e, felizmente, fisicamente avantajado guia, de nome Hans e, de posse dos instrumentos de medição de temperatura, pressão, altitude e latitude, e dos mais óbvios instrumentos e víveres de uma longa expedição, partem para o vulcão adormecido onde o mapa indicava que estaria a entrada para o centro da Terra.

A narrativa de Verne é, ao mesmo tempo, uma mistura excelente de um palavreado datado, de um mundo específico de uma Europa novecentista, junto a uma descrição incrível das façanhas realizadas pelo trio, intercaladas de momentos de emoção e do mais puro marasmo. No caminho, o leitor se dá conta do vasto conhecimento histórico e científico que o autor teve de acumular, selecionar e organizar para descrever de forma convincente não só o caminho interior pelas minas, declives, e terrenos, mas sobretudo a capacidade de argumentação e de convencimento atribuída ao notável Lidenbrock, a quem é conferida toda a aura de sabedoria e de autoridade da "realidade" que os cerca.

Esta realidade é, porém, tudo menos o que o ser humano da época poderia comprovar. A primeira tese que Verne, através de Lidenbrock, contesta, é a de que o centro do planeta seja absurdamente quente. Valendo-se das descobertas do químico inglês Davy Humphry -- ou atribuindo-lhe o que dizia --, a voz do professor alemão diz concordar com o britânico ao explicar que, sob certas condições químicas, elétricas e físicas, a temperatura da Terra não seria alta em seu centro, porque do contrário ela derreteria indefinidamente até que consumisse o planeta. Esse é o argumento básico para justificar a possibilidade humana de uma expedição por um caminho tortuoso através de léguas e léguas, iluminado por uma lanterna halogênica, que não explode em gases mais insólitos, para iluminar o caminho dos três aventureiros, até que encontrem não só uma torrente de água fervente, como também, e de forma mais extraordinária, um mundo prehistórico conservado sob mais de quarenta léguas de distância da crosta terrestre. Este é um mundo onde um oceano de 600 léguas de raio abriga seres marinhos da era quaternária, como baleias e peixes que não enxergam, onde o solo faz brotar cogumelos gigantes, de mais de três metros de altura e de expansão do chapéu, e onde encontra-se uma floresta que desafia qualquer bioma, porque agrupa no mesmo ambiente árvores temperadas, tropicais e setentrionais, e em cujo ambiente eles virão a descobrir nada mais, nada menos do que mastodontes pastoreados por seres humanos de 4 metros de altura. Todo o ambiente descrito completa seu aspecto fantástico porque está abrigado sob um "céu" iluminado pela enorme carga elétrica da energia que ali está acumulada há milhares de anos, fruto da composição química das rochas e dos minerais do interior do planeta, e que gera uma luminescência semelhante à aurora boreal, sobre um mar que, ainda que distante da crosta, sofre as influências do ciclo planetário e das elipses terrenas e, por isso, cause marés altas e baixas -- o que lhes permite, por exemplo, cruzar este insólito ambiente e ali encontrem o testemunho do islandês seiscentista: uma adaga espanhola enferrujada e amassada, com que marcara a rocha com suas iniciais.

Interessante é o leitor acompanhar o modo como Verne constrói a verossimilhança, misturando-a às alucinações, sonhos, exaustão e inúmeros questionamentos da personagem narradora que é o jovem Axel: a certa altura, quando explodem um rochedo (pois levam pólvora consigo) e sua jangada é sugada pelo negro abismo aberto na explosão, e passam a ser empurrados água e lava acima, o rapaz se pergunta se aquilo é possível, e como conseguem sobreviver à brusca mudança da temperatura de 27,3°C para a de cerca de 70°C da lava que só não consome a madeira fossilizada da embarcação porque ali se forma uma crosta protetora, e como sairão os três vivos dali. O dado é que o vulcão os expele, seminus, semiconscientes, não na Islândia, mas na Itália, a cinco mil quilômetros de onde haviam iniciado sua jornada. Daí para um final renomado, em que Hans volta à sua terra natal, o professor se torna famoso e Axel se casa com sua prima Gräuben (mencionada no início do romance e sempre lembrada pelo narrador ao longo de sua aventura), é questão de dois capítulos que servem para encerrar o romance -- porque seu valor está na trajetória, e não no desfecho propriamente dito.

É importante explicar, para o leitor que não teve a oportunidade de aprender um pouco mais sobre Verne, que o autor francês viveu em época de grande produção literária que transitava do romantismo para o realismo, e manteve contato com muitos cientistas, naturalistas e estudiosos de seu tempo. É quase desnecessário dizer que ele inaugurou a nossa ficção científica, e que seu espírito visionário anteviu muitas das coisas que a humanidade logo conheceria, como o submarino e a viagem à Lua, mas disso volto a falar em outra ocasião. Basta, por hora, pensar que devemos Star Wars e Blade Runner a ele e, mais ainda, nas suas últimas publicações, a preocupação maior: o homem pode até se superar, mas o que fará, como fará e o que acontecerá com a a humanidade quando colocar seus conhecimentos à prova e então em funcionamento? Não tenho resposta a estas questões mas, assim como Verne, rogo para que sejam experimentados de modo a nos beneficiar sem impactar mais ainda a natureza, e que o homem aprenda, afinal, a medida entre o possível e o sensato.



Fonte de informações sobre o autor:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Julio_Verne

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Volume 18 - Os Patins de Prata - Mary Mapes Dodge

Os Patins de Prata é um romance escrito para o público infantil pela norte-americana Mary Mapes Dodge. Publicado em 1865, ele narra a história da humilde família Brinker de holandeses, cujo pai se encontra doente há dez anos e os filhos, Hans e Gretel, auxiliam a mãe a manter a casa.

Situado na Holanda, a narrativa é uma rica pintura do país e de sua história, e apresenta o país e suas cidades principais de forma colorida e cheia de vida, enfeitando-a com museus e objetos de conquistas em guerras, roupas típicas de camponeses e camponesas, e o clima frio com as tradicionais férias de dezembro e as festas de São Nicolau, quando árvores ainda não faziam parte do Natal e este ainda não era ali comemorado no dia 25 de dezembro.

Para descrever o ambiente, o narrador se vale de um enredo secundário, em que os amigos e vizinhos de Hans e Gretel empenham-se em uma viagem de patins desde a cidade de Brock até Haya e de volta, passando por Amsterdam. É durante este caminho que o leitor aprende, por exemplo, a história popular do menino que, para salvar o país de ser invadido pela água que vazava de uma pequena rachadura num dique, passa a noite no frio, congelando, com o dedo tampando o buraco, até que quase ao amanhecer um padre o encontra e chama pessoas para ajudar o menino e imediatamente tampar a falha no dique. Esta e outras histórias sobre a Holanda são narradas de forma apologética, e o leitor vê-se encantado com o clima de comunidade pequena de um país pitoresco, onde os personagens primários lutam não só para sobreviverem, mas para curarem o pai que, em vezes cada vez menos espaçadas, tem crises nervosas e ataca seus familiares, sem reconhecê-los.

A história de Hans e Gretel não é somente cuidar para que mantenham a si e aos pais vivos e alimentados: devem eles também lutar para encontrarem seu lugar social e entre seus pares. Ele com 15 e ela com 12 anos, são vistos como párias na cidade e participam das atividades lúdicas de patinação com patins de madeira que o garoto, muito hábil, esculpe. Somente com trabalho -- e com a caridade de garotas como Hilda e Anna, das famílias abastadas locais -- conseguem comprar patins de aço e se prepararem para a grande competição anual de patins de garotos e garotas, na qual o prêmio para cada categoria -- feminino e masculino -- era um par de patins de prata.

Entre um e outro enredo, Hans obtém a simpatia do médico local para que este visite o pai, o diagnostique e o opere, curando-o. Como não pode deixar de ser num romance romanesco, o Sr. Brinker cura-se e conta à família, que durante os dez anos de sua doença penou para se manter viva, onde havia enterrado as economias que tinha, de forma que possam agora ter o que comer, vestir e aquecer a casa sem desespero para suprir a necessidade seguinte. Além disso, lembra-se de ter, na manhã do dia em que o acidente no dique ocorrera, ter-se deparado com um jovem e desesperado nobre que desejava desaparecer da cidade e lhe pedira ajuda para atravessar o cais. Ao se despedir dele, pedira-lhe que retornasse o relógio ao pai e lhe informasse de seu paradeiro. Até então, o relógio e a história do rapaz permanecera obscurecida pela doença do pai de Hans e Gretel, e é com grande surpresa que ao visitar o doente em recuperação, o médico se depara com o relógio e declara que era de seu filho desaparecido.

Como se pode esperar, as tramas se amarram e o final feliz se estabelece: retorna ao lar o filho pródigo, que estivera durante todo o tempo na Inglaterra e se estabelecera como industrial; recupera-se o Sr. Brinker e passa a trabalhar na fábrica do filho do médico; cresce o jovem, estudioso e honesto Hans e torna-se médico; cresce a adorável, caridosa Anna e casa-se com Hans; cresce a pequena e gentil Gretel, ganhadora do concurso dos patins de prata, e casa-se com o bom médico que havia curado seus pais; e cada um dos seis amigos que haviam empreendido a viagem de ida e volta a Haya tem seu destino definido.

Pelo seu conteúdo previsível, seguro e solidamente feliz, com pitadas exóticas e um espírito nacionalista, como convinha ser nos Estados Unidos de 1865, época do final da Guerra de Secessão, Os Patins de Prata estabeleceu-se como sucesso imediato e, em trinta anos, teve mais de cem edições. O fato de a autora ser redatora-chefe do jornal para crianças St. Nicholas e de manter contato com famosos escritores, como Harriet Beecher Stowe (que escreveu A Cabana do Pai Tomás) e Frances Hodgson Burnett (que escreveu O Pequeno Lorde e O Jardim Secreto), dentre outros, certamente contribuiu para que o romance entrasse em circulação e fosse amplamente divulgado, mas o que mais chama a atenção é o elemento biográfico do romance de Dodge: porque, embora se passe na Holanda e a história seja fictícia, é difícil para o leitor atento não entender que Hans e Gretel, sem um pai ativo e passando por dificuldades financeiras muito graves durante 10 anos, não sejam de certo modo espelho dos filhos da própria escritora, que se tornou viúva logo após o marido ter entrado em colapso financeiro, ter sido dado como desaparecido e então ter sido encontrado morto um mês após o desaparecimento. Há ainda outros elementos que permitem este tipo de comparação, mas no final, importa que o livro tenha apelo à audiência ao qual se destina, de tal modo que se tenha perpetuado o bastante para figurar, mais de um século depois, e em contexto semelhante de exaltação ao nacionalismo, na coleção Clássicos da Literatura Juvenil.

Material de referência sobre a autora:
http://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Mapes_Dodge (em inglês)


segunda-feira, 10 de maio de 2010

Volume 17 - Ivanhoé - Walter Scott

"Aventura" é o caldo que se concentra no caldeirão da coleção Clássicos da Literatura Juvenil. Mas, desta vez, o leitor tem o prazer de se deparar com Ivanhoé, clássico escrito pelo escocês Walter Scott (1771-1832), condecorado cavaleiro e por isso conhecido mais como Sir Walter Scott -- ou, ainda, como Waverley, título do romance que o tornou definitivamente famoso.

Ivanhoé, publicado em 1819, é famoso por ser, dentre a safra dos romances de Scott, que inauguraram o gênero de romance histórico, o mais famoso e o mais aceito de todos. Não é para menos: o livro, ainda que condensado em cerca de cinquenta por cento do seu volume original, apresenta todos os elementos que o ajudaram a se perpetuar como obra-prima britânica: o elemento histórico da vida de Ricardo Coração de Leão e da traição de seu irmão, João Sem Terra, ao elemento folclórico da presença de Robin Hood e de seu bando na floresta de Sherwood, incluindo o Frade Tuck; a religião católica questionada pelas licensiosidades dos templários e dos religiosos regados a vinho e a cortesias de nobres cruéis com sua vassalagem; a religião judaica exaltada pela fé e pela compaixão ao mesmo tempo em que é desprezada por sua usura; a aventura épica em busca de honra e de glória, armadas com coragem e lavadas com sangue; o romance e o amor, que encontram obstáculos nas questões de hereditariedade, na ausência prolongada do herói e na eminência de sua morte; e a exaltação do nacionalismo utópico, tão comum aos escritos do início do século XIX, que aparecem sob a forma de combate ao comando normando e de resgate do trono por parte do verdadeiro Rei.

Desta forma, o leitor se depara com a chegada de um comandante templário chamado Brian de Bois-Guilbert, de um abade, de um peregrino e de um velho judeu ao castelo de Cedric de Rotherhood, no final do século XII. Este, saxão e guardião da bela Lady Rowena, de linhagem real, recebe a todos, dedicando atenção e dispendendo cuidado de acordo com suas respectivas importâncias, estabelece sua posição de saxão logo de início, ao explicar que recebe e hospeda a todos, mas não dá mais do que três passos para cumprimentar aos visitantes, devido ao juramento de dar mais passos para o verdadeiro rei saxão. Além disso, explica que entende o francês, mas que ele fala o saxão. A trama se desenrola, e o leitor vem a saber que o peregrino é senão o jovem Wilfred de Ivanhoé, filho de Cedric, expulso e deserdado porque ousara olhar para Rowena sem que ela usasse o véu e dela se enamorasse.

Ao longo da narrativa, o templário se revela traidor de seu voto sacerdotal templário, pois que se interessa por Rebeca, a filha de Isaac de York (o judeu hospedado pro Cedric e que Wilfred ajuda a fugir antes do amanhecer para não ser capturado pelos normandos) e o cerco se arma para que, ao mesmo tempo, Rebeca seja capturada por Bois-Guilbert, Cedric e Wilfred seja morto para que suas terras, confiscadas pelos nobres, não seja devolvida; para que Rowena case-se à força com um nobre que manda raptá-la; e para que João Sem Terra prenda Ricardo I e possa reinar tão indiscriminadamente quanto o fizere durante os anos em que seu irmão lutara na Palestina, nas Cruzadas. Ivanhoé, na verdade, é mais do que um proscrito pelo pai. Alma nobre e corajosa, lutara nas Cruzadas ao lado do Rei Ricardo e o salvara diversas vezes, de forma que o reencontro de ambos, que se dá no meio de um assalto de resgate do pai e da amada Rowena, é feliz e bem-aventurada.

Muitos são os fios que costuram ainda mais esta trama. A intertextualidade do romance com relatos de Robin Hood é visível -- e nada do que lemos no volume 14 difere de forma significante deste romance --, e os elementos políticos com relação à nacionalidade é que mais chamam a atenção, devido à época da qual este romance é produto. Porque, embora trate de questões históricas relativas ao século XII, a narrativa deixa entrever alguns elementos fundamentais acerca do início do século XIX. Um deles é a atmosfera utópica de um nacionalismo conciliado e uno, em que ingleses são resultado da união dos saxões com os normandos e da qual resulta, com o acréscimo do latim e de algumas línguas europeias do sul, o inglês moderno como elemento unificador e símbolo de uma nação soberana. Ora, sabemos, e olhamos para este dado do lugar anacrônico que ocupamos como leitores do século XXI, que a Grã-Bretanha estava em franca expansão na África e a Ásia, colonizando, pelo amor ou pela dor, pelo ouro ou pelo chicote, a todos que encontrasse no caminho, tal como a França -- ou melhor dizendo, a Normandia -- fez com a Grã-Bretanha no século XI, e os saxões muito antes disso, no século V.

Mesmo assim, ainda que com vários elementos históricos típicos do século XIX escapando pelas brechas da narrativa, como o espírito nacionalista pós-revolução Francesa e a fonte das novelas de cavalaria e dos romances anteriores que o autor leu, tais como Dom Quixote, Ivanhoé não deixa de perpetuar Scott como o grande escritor romântico britânico, ao lado de Lord Byron, e tampouco deixa de influenciar as incontáveis novelas e romances posteriores, até hoje, como a própria série Harry Potter -- afinal, de onde sairiam inspirações óbvias como Rowena Ravenclaw, Cedric Diggory e Fangs, o cão de Hagrid? Importância literária e influências à parte, e tomando-se o livro como leitura juvenil, o leitor verá que não foi à toa e muito menos sem mérito que ele permanecesse vivo até os dias de hoje e figure como clássico universal. Só por isso, e pelo sabor de aventura que nos rodeia a cada volume da série, já vale a leitura.

Fonte de informações do autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Walter_Scott

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Volume 16 - Mulherzinhas - Louisa May Alcott

Mulherzinhas é um dos livros da coleção Clássicos da Literatura Juvenil que eu não tinha lido até que a oportunidade para a resenha se apresentasse, embora o mesmo não possa ser dito com relação à adaptação cinematográfica de 1994, a que assisti inúmeras vezes.

Originalmente publicado como romance acabado em 1871, o livro apresenta o crescimento de quatro irmãs da família March: Margarida, Josefina, Elizabeth e Amélia. Elas são filhas da tradicional família March, de classe média falida, no condado de Concord, norte dos Estados Unidos. Com o pai idoso lutando na Guerra Civil e a mãe trabalhando em centros de caridade, elas contam com Ana, a empregada, e umas com as outras, para alegrarem-se, cuidarem da casa, e aprenderem a crescer. Contam, ainda, com o jovem vizinho Lourenço, com quem Josefina tem mais afinidade, e assim vão levando a vida em meio às descobertas da vida e da sociedade americana.

Neste romance doméstico, o que não falta, na verdade, são lições de moralismo e de caridade. Embora bastante doce e cativante, a narrativa não perde a oportunidade de apresentar os defeitos das mocinhas como falta de compostura social, como vaidade exacerbada, ou até mesmo como falta de costumes sociais, posto que estavam quase à margem da sociedade devido à dificuldade financeira de seu pai. Assim acontece, por exemplo, logo no início do romance, quando as meninas decidem que férias são feitas para serem plenamente vividas, e sua mãe decide ensinar-lhes pelo exemplo que o ócio é ruim, bem como o trabalho feito o tempo todo sem tempo para descanso. Passando pela experiência de nada fazerem a semana inteira, e em seguida por não pararem um só minuto para descanso no sábadoo, as meninas aprendem que o equilíbrio é a chave para uma vida feliz e saudável, que sermões ou pregações tenham sido empregados.

A narrativa segue, e as meninas estreitam laços com os vizinhos. O velho Sr. Lourenço, avô de Lourenço, enternece-se pela arte e pelo dom da tímida Elizabeth, que toca o piano em sua casa, e o dá de presente a ela. Secretamente, o tutor do garoto Lourenço apaixona-se por Margarida, uma pequena dama em formação. Josefina empenha-se em se tornar uma escritora, lendo muito enquanto trabalha como dama de companhia para a tia velha e rabugenta, irmã de seu pai, e Amélia deixa de estudar na escola e passa a ficar em casa e a aprender com Margarida, e depois passa a morar com a tia, como forma de moldar seu caráter.

Aos poucos, a irmã mais velha, tutora de crianças ricas, aprende a amar João Brooke, tutor do jovem Lourenço. Josefina deixa de trabalhar para a tia, ouve o amigo Lourenço declarar-se para ela, nega-lhe o pedido de casamento, vai para Nova York tornar-se tutora e para tentar escrever e ver seus trabalho publicados, e conhece o professor alemão Frederico Baher, por quem acaba se apaixonando. Juntos, eles transformam a propriedade que Josefina herda da tia em uma escola para meninos. Ao percorrer este caminho, aprende que nem sempre liberdade significa poder fazer o que quer, mas que pode ser útil à sociedade e ser caridosa ao mesmo tempo. Elizabeth, de saúde frágil, contrai escarlatina, cura-se e, durante todo o romance, dedica-se a cuidar de sua família, sem que tenha interesse em mudar sua situação; e a mimada e voluntariosa Amélia passa uma temporada em Paris e se torna esposa do jovem Lourenço. Este, afinal, aprende que nem só de gostos pessoais e da boemia se pode viver, e toma as responsabilidades dos negócios do avô para si. O grande salto para a responsabilidade é dado quando ouve a repreensão de Amélia, pois é quando decide que para ser digno de seu amor, já que Josefina nunca o amou mais do que a um irmão, ele deve ser digno de si mesmo, em primeiro lugar.

Como se pode ver, a narrativa não apresenta grandes saltos ou reviravoltas, e vai muito no estilo romântico da época. No entanto, o leitor há de prestar atenção não à historinha contada, mas ao modo como ela é contada e por quem ela é contada. Falo, obviamente, da autora Louisa May Alcott, que era notadamente feminista e abolicionista. Filha de um professor de filosofia que seguia doutrinas europeias, mais especificamente alemãs -- como o transcendentalismo, Ela viveu num ambiente escolar de formação patriótica e altamente moralista. Os primeiros rascunhos da história de Mulherzinhas foi publicado em 1868 e surgiu como romance somente em 1871, seis anos após o término da Guerra, com vitória para os abolicionistas do norte -- ou da União, como eram conhecidos.

O romance é, pois, um relato semibiográfico em que se pode enxergar, sem dificuldade alguma, a própria autora como a audaciosa Josefina, e o professor Baher como a encarnação masculina dos ideais de educação, cultura e distinção que ela via no pai.

O sucesso do romance foi estrondoso porque certamente correspondia aos valores da época. Destruídos pela fome, pelas doenças, pela miséria, pela violência e pelo trabalho árduo de mulheres e crianças, em decorrência da guerra que durara 4 anos, os americanos encontravam-se num estado tal de fragilidade identitária, que precisavam recuperar o sentido de nação, e nada melhor do que instrumentos que lhes reassegurassem e resgatassem a resposta a uma pergunta que já perdera sua resposta há muito tempo: por que é mesmo que lutamos? E para que mesmo é que lutamos e morremos, afinal? Política e economia à parte, o romance ajudou seus jovens leitores a compreenderem o valor do amor, da abnegação, da conformação social e econômica -- pois trata-se de personagens que eram relativamente ricas e se tornam pobres, e que vivem felizes mesmo sendo pobres -- e, desse modo, atraiu para a autora a notoriedade e o reconhecimento que a estimulariam a escrever mais romances de cunho familiar e patriótico e, quinze anos depois, em 1886, a continuação do romance, intitulado A Rapaziada de Jô.

A fama durou relativamente pouco para Alcott: em 1888, ela viria a morrer de complicações de uma doença não diagnosticada (nunca se soube se a morte ocorrera por envenenamento de mercúrio usado para fins medicinais, se por meningite ou se por lúpus). Isso não impediu, porém, que outras mulheres trilhassem seu caminho, e com maior sucesso ainda, como foi o caso de Laura Ingalls Wilder. Tampouco impediu que esse material 'literário', embora muito comovente e construído num mundo idílico, utópico e numa sociedade quase pré-capitalista, assumisse seu caráter predominantemente ideológico e de formação da identidade nacional e fosse celebrado assim durante as décadas que se seguiriam a eles, fosse por meio de professores que os considerassem autobriografias de vidas exemplares de americanos, por meio de homenagens aos autores, ou por meio de toda sorte de resgate da narrativa, como é o caso das inúmeras edições de Mulherzinhas que vieram no século XX, bem como de todas as adaptações para o drama, a TV e o cinema que a sociedade testemunhou e durante muito tempo 'comprou' -- eu mesma tendo sido uma durante muito, muito tempo antes de entender que devemos ler a obra como ela é: uma ficção sobre um tempo remoto e uma versão possível de sociedade e de valores, e não como referência absoluta do americanismo. No final, tamanha é a eficácia da indústria cultural, que aml podemos diferenciar uma coisa da outra, embora sempre tenhamos de estar vigilantes para apreciar sem jamais deixar de lado nossas considerações críticas a respeito de tudo o que lemos, vemos, escutamos e testemunhamos -- em suma, do que vivemos.

Fonte de informações sobre a autora: http://pt.wikipedia.org/wiki/Louisa_May_Alcott (em português) e http://es.wikipedia.org/wiki/Louisa_May_Alcott (em espanhol -- mais completa).