Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Volume 28 - Nevada - Zane Grey


Lembram-se de Caçadores de Cavalos? Para aqueles que não leram a resenha do volume 25 da coleção Clássicos da Literatura Juvenil, Nevada é a continuação da história do jovem Ben Ide e do misterioso caubói que, um dia, aparece nas montanhas onde Ben habita, e com ele passa a morar e a dividir as tarefas, as conversas, os negócios e as aventuras.

O que não contei lá atrás eu deixei para contar agora, enquanto mote desta trama: esta narrativa tem início do ponto em que parou a anterior, quando, para salvar as famílias Ide e Blaine da bancarrota, Nevada mata o bandido Les Setter e, por isso, foge da California, não deixando nada atrás de si além de poeira levantada.

Nevada é o livro, então, que dá conta de relatar ao leitor, em terceira pessoa, na voz de um narrador que penetra na cabeça das personagens de acordo com sua conveniência (este é o chamado narrador onisciente), a vida pregressa de Nevada e a grande aventura que ele encontra, anos depois, erradicado no estado norte-americano do Arizona. Pois é para lá que Ben Ide, junto de sua esposa Ina, seu filho Blaine, sua irmã Hattie, sua mãe e seu jovem cunhado Marvie seguem, com uma comitiva de trabalhadores, em busca de um clima mais seco e mais quente, em uma terra inculta onde possam estabelecer novo lar.

Ora, dá-se que é justamente naquele lugar em que uma enorme e misteriosa quadrilha de ladrões de gado atacam estancieiros e roubam-lhes o gado, em enormes quantidades. Ben compra a fazenda que, quatro anos antes, Nevada -- na verdade, Jim Lacy, conhecido por roubo de gado e cavalos, por bebedeira e jogos de azar e, sobretudo, por ser exímio e muito respeitado pistoleiro -- havia sido capataz. Agora, sob o disfarce de Texas Jack, o misterioso e solitário caubói, com a bênção da lei do condado, resolve se embrenhar no meio de bandidos e tornar-se jogador e ladrão, retomando a antiga vida, disposto a ir até o fim para desmascarar a enorme e perigosa quadrilha que mantém o negócio de roubo de gados e morte de fazendeiros, na região, porque descobre que o mais lesado dos fazendeiros é senão Ben Ide e sua amada Hattie, a quem ele jamais esquece.

Zane Grey organiza o enredo de forma semelhante a Caçadores de Cavalos e, assim, há três histórias entrelaçadas neste romance: a perigosa aventura de Jim Lacy em busca do desmascaramento do bando Pine Tree e de seu chefe -- que nada mais é do que o sobrevivente da guerra do Texas, companheiro de Billy the Kid, e que estrategicamente coloca-se como capataz e homem de confiança de Ben --; a história de luta de Hettie pela terra que possui com o irmão e pelo amor de Jim Lacy/ Nevada/ Texas Jack; e a história de amor de Marvie Blaine (o pequeno Marvie, cupido na relação de amor entre sua irmã Ina e o então renegado Ben Ide) e Rose Hatt, pobre filha de uma quadrilha de ladrões da qual o maior perigo é seu irmão mais velho, Cedar Hatt.

Falas melodramáticas, grandes expansões e arroubos de amor e de lealdade, e lições de moral e de ideologia norte-americana do homem que seu autoconstrói (o famoso self-made man) estão mais do que presentes neste trabalho bem elaborado do escritor que abandonou sua carreira de dentista para viver de literatura. Uma das que mais se destacam é a do juiz Franklidge ("curiosamente", uma mistura de "Franklin", um dos notáveis presidentes e fundadores da nação norte-americana, e "judge", que significa "julgar; julgamento"), acerca do cenário e do tempo histórico em que vivem:

Quero tornar claro em seu espírito exatamente o que homens como Jim Lacy

significam para mim. Vivi a maior parte da minha vida na fronteira e sei
o que a terra agreste foi e ainda é. Há homens maus, e homens maus.
Conheci ou vi muitos dos notáveis assassinos. Wild Bill, Wess Hardin,
Kingfisher, Billy the Kid, Pat Garret e um punhado de outros. Estes homens
não são assassinos sanguinários. São um produto dos tempos. O oeste nunca
poderia ter sido povoado sem eles. Eles fazem um balanço entre as hordas
de salteadores marginais da lei, caracteres fortemente malignos como
Dillon, e a vida rude de uma era rude. É o oeste tal como qualquer de seus
filhos conhece agora. E, como tal, não podemos ser pioneiros, não podemos
progredir sem esta violência. Sem a eliminação de homens dissolutos e
perigosos como Dillon, Cedar Hatt, Stillwell e outros. A dificuldade é que
somente jovens de nervos de aço como Billy the Kid, ou Jim Lacy, podem enfrentar
tais homens em seu próprio terreno (GREY, 1928; 1972: 222).

O aspecto interessante a se observar, neste trecho que é uma lição de literatura e sociedade norte-americana, não é a apologia à violência -- até porque esta era, numa terra em que a sociedade estava ainda sendo construída, quase inexistente, senão inexistente de fato --, mas a clara crença na capacidade de autorregulação social, na aceitação de que os fortes sobrevivem e de que, mesmo assim, depende dos que são ainda mais fortes, que possuem "nervos de aço" para regular a sociedade, guiando-lhe através das florestas desbravadas e dos campos arados.

Torno a afirmar, então, o caráter reafirmador de identidade nacional que este livro apresenta, e sua ampla utilizada em anos posteriores à sua publicação, quando mais do que nunca, como expliquei por ocasião da resenha de Caçadores de Cavalos, a sociedade norte-americana precisava de uma tábua de salvação para se reeguer do crash de 1929. O aspecto utilitário do livro não é ruim -- desde que, é claro, se deixe claro o limite entre realização utópica da construção de uma vida (em que o leitor sente-se na pele do herói) e a vida que, criticamente, o leitor leva, e à qual retorna a cada leitura destas muitas e inesquecíveis aventuras apresentadas nesta coleção.

Fonte de informações sobre o autor (em inglês): http://en.wikipedia.org/wiki/Zane_Grey

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Volume 27 - O príncipe e o mendigo - Mark Twain


Eu ouvi falar da história do menino príncipe que troca de identidade com o mendigo há muito tempo; eu era criança, e vi em filme da Sessão da Tarde, li em gibi da Turma da Mônica, e li adaptação ilustrada na biblioteca da escola. Só não sabia que era do Mark Twain.

Não se engane, querida leitora e caro leitor, e nem torça o nariz, se não gosta muito do levado Tom Sawyer: o tempo, o lugar, a história e o Tom aqui são bem diferentes, mas o conteúdo politizado e muito pertinente ao contexto é o que conhecemos do escritor Samuel Clemens.

Encontramos, aqui, o pobre Tom Canty, pobre de nascimento, irmão de suas meninas e vítima de surras do pai e da avó, violentos, bêbados e ladrões, porque se nega a roubar e mal consegue mendigar. A família Canty mora num dos inúmeros cortiços da Londres do século XVII, quando a Inglaterra vivia o reinado de Henrique VIII, pai do jovem Eduardo Tudor, e a única distração de Tom, quando não estava mendigando e nem brincando com seus amigos na rua, era sonhar com reis, príncipes, romances de capa e espada, e toda sorte de aventuras que um pobre como ele pode apenas sonhar. Sua aptidão para os estudos e sua personalidade menos medíocre e mais intelectualizada levam o padre do bairro, dispensado dos serviços reais, a clandestinamente ensinar Tom os rudimentos da leitura, da escrita, da matemática, da história e do latim, alimentando assim a mente fantasiosa do garoto.

Ora, a ironia e mote da narrativa de O príncipe e o mendigo, publicado originalmente em 1882, está justamente em Tom Canty ter nascido no mesmo dia em que tinha nascido o príncipe Eduardo Tudor, e de ambos serem muito parecidos. E acontece, é claro, de o pobre chegar nos portões do castelo quando Eduardo sai para ver o público, de os dois trocarem de papéis em segredo e de viverem toda a aventura do livro, contado em terceira pessoa por um narrador que não deixa, nem por isso, de apontar toda a crítica à pompa e circunstância de uma realeza que nada faz de útil e que custa muito, muito dinheiro mesmo aos cofres públicos falidos ingleses, e nem de mostrar toda a desilusão com a imagem de justiça, bondade, igualdade e sabedoria que o principezinho, na pele do mendigo Tom, descobre ao peregrinar e passar pelas aventuras em companhia do carrasco John Canty e do salvador, o nobre Miles Hendon. Este é um expatriado que volta ao país após 10 anos de serviço ao exército e viagem ao exterior, a fim de retomar seu lugar na família, somente para descobrir que seu irmão Hugo mata o pai de desgosto e se casa com Edith, a prometida do próprio Miles, tornando-se senhor único das terras dos Hendon.

A aguda percepção de uma Inglaterra falida e do que a aristocracia representava, em termos de poder, no século XVII, já seria mais do que suficiente para render a Mark Twain o reconhecimento por esta obra-prima histórica dirigida ao público infantil e juvenil, mas existe, ainda um quê muito sutil e acusativo da subversão que até o mais justo e inocente dos seres, que é Tom Canty, pode sofrer por influência do poder e do dinheiro. Passando-se perfeitamente pelo príncipe (graças, é claro, à educação que lhe havia sido dada pelo padre), ele se deixa envolver pelo cotidiano da corte e, paulatinamente, anestesia sua consciência, esquecendo-se do dinheiro gasto, dos cofres vazios, das diferenças sociais, das extravagâncias dos nobres, e até mesmo da sua origem, apagando pouco a pouco o sofrimento da mãe e das irmãs nas mãos de seu pai e de sua avó. O que o salva de se render definitivamente ao papel que representa e de usurpar o direito de nascença de Eduardo é a figura redentora da mãe, em meio ao público que vai até a praça para assistir à coroação do rei, uma vez morto Henrique VIII. É nesse cenário que ele se arrepende que quase ceder ao conforto e a tudo o que o dinheiro e o poder podem comprar, e cede seu lugar ao “mendigo” Eduardo, que com a ajuda de Miles chega à praça para assumir seu posto real antes que o “farsante” seja coroado.

A saga termina bem, e Tom se vê amparado por Eduardo, bem como a sua mãe e irmãs. O pai vai preso, e o narrador, nesta obra traduzida e adaptada por Maria Lúcia de Mello e Souza, conta ao leitor que o malvado Hugo foge do país, quando no original ele é morto na forca. Este é um dos destinos amenizados (quando não suprimidos) que a equipe de profissionais contratada para trabalhar com a coleção Clássicos da Literatura Juvenil, por censura ou por adaptação à faixa etária, acaba realizando, embora isso não retire da obra o mérito que lhe cabe, e tampouco me impede de recomendar a vocês que o leiam e o recomendem a seus alunos e amigos leitores, porque o espírito político e a crítica social continuam não só atualizadas, mas fazem muita falta num país como o nosso, que carece dessa memória histórica e de discernimentos como estes que nos oferece tão prodigiosamente Mark Twain.

Fonte de informações sobre o autor:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mark_Twain

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Volume 26 - Moby Dick - Herman Melville

Se há um livro que eu não leria pela capa, seria a edição adaptada de Moby Dick traduzida e publicada na coleção Clássicos da Literatura Juvenil. Não esperaria encontrar, ali estampada a obstinada figura do capitão Acab (em inglês, chama-se Ahab), mas da lendária baleia -- ou melhor dizendo, da cachalote -- que singra os mares com a mandíbula retorcida e os arpões espetados em sua couraça.

Tal é o poder da personagem Moby Dick, neste romance que o americano Herman Melville publicou no século XIX mas não chegou a viver para ver, no século XX, a obra colossal -- no tamanho de 802 páginas e no espírito de aventura -- se transformar no clássico universal que conhecemos hoje.

Nesta narrativa, o leitor e a leitora se deparam com a história que o jovem Ismael, veterano da marinha mercante, conta sobre a sua aventura no navio baleeiro chamado Pequod, onde um excêntrico capitão comanda não em busca de baleias comuns, de que pudesse extrair o valiosíssimo azeite, mas da mortífera Moby Dick, uma baleia da espécie cachalote, de cabeça descomunal, totalmente enrugada, com mandíbula torta e um bosque de arpões e outros metais enterrados em seu corpo, frutos das inúmeras malfadadas tentativas de vários marinheiros de fazê-la flutuar morta. Inclui-se, no rol de aventureiros, o próprio capitão Acab, cuja perna foi comida por Moby Dick e de cuja sanha de vingança escapou por sorte e habilidade da equipe que o resgatou de alto-mar.

Junto de Acab, que raramente sai de seu camarote, governam o navio três oficiais, escalados em ordem de hierarquia: o cauteloso e sensato Starbuck; o sossegado Stubb e o animado e bonachão Flask -- todos muito responsáveis e ciosos de seus deveres, embora sejam, pessoalmente, contra a vingança pessoal de Acab contra a baleia branca. Para apoiar os oficiais nas caçadas, há três exímios arpoadores: Queequeg, amigo de Ismael; Dagoo; e Tashtego.

Particularmente interessante é a relação que Ismael estabelece com Queequeg. Conhece-o logo no início da história, quando, em terra firme, conhece o selvagem numa taverna onde se vê obrigado a dividir a cama com o estranho homem tatuado, com um único tufo de cabelo, e vendedor de cabeças humanas. Em instantes, descobre que a aparência e os costumes e rituais tribais não são nada perto do caráter e da retidão que lhe demonstra o homem. Nasce, a partir da simplicidade de Queequeg e de sua doação para com Ismael, uma longa e duradoura amizade que só virá a se desfazer por ação humana e resposta da natureza a tal ação.

Do mesmo modo, é muito importante prestar atenção à descrição que o narrador faz de Acab: descrito como louco e alucinado por sua vingança, não deixa de, ao mesmo tempo, precaver-se contra possíveis motins, já que tem ciência de que o único objetivo da tripulação é enriquecer mediante a venda dos produtos extraídos das baleias. Por isso, intercala sua busca com caças às baleias, enquanto encontra-se com outros navios ao longo da viagem que empreende ao longo de quatro mares. Nada o demove do firme objetivo de encontrar e liquidar a baleia, e para isso faz qualquer coisa -- até mesmo admitir em sua embarcação tripulantes malaios que estão ali clandestinamente -- um dos quais, o misterioso Fedalah, parece exercer forte influência sobre Acab, por conta de seus vaticínios.

A descrição da viagem, do dia-a-dia da tripulação, da caça às baleias e do modo como se dá a extração do azeite e da carne, bem como da vida marítima que cerca o barco em busca da carcaça do animal, só poderia ser feita por alguém que tivesse profundo conhecimento de tal realidade. De fato, o americano Melville participou de várias viagens marítimas mercantes e algumas baleeiras, e seu testemunho foi crucial para criar a narrativa testimonial de Ismael, tão vívida que chega até mesmo a conferir a sensação de frênesi e de angústia ante o perigo oferecido pela caçada e a morte sempre à espreita.

De fato, a narrativa é bastante coerente e até mesmo cíclica no que diz respeito à questão da vida e, sobretudo, da morte. O tempo inteiro, aqui e ali, o leitor se depara com descrições que se referem à morte de marujos; de superstições; do terror causado pela noite e pela cor branca da baleia, que lembra cadáver, gelo, e frio; pelos abutres que visitam as carniças; pelos tubarões que devoram os que caem mortos ou machucados no mar, sejam homens ou animais; e por toda a atmosfera de morte eminente que ronda a embarcação e o próprio capitão, reafirmada pela previsão de Fedalah, segundo a qual Acab morreria no mar, não antes sem ver dois tipos de morte: uma sem caixão, e um caixão flutuando no mar. Ora, dá-se que, por conta de destruições em caçadas, o único "salva-vidas" de que dipõe o Pequod é justamente o caixão que Queequeg tinha construído para si e que estava guardado no porão. A ele é dado o tratamento necessário para que flutue e amarrado cordas para que, em caso de necessidade, homens ali se agarrem. A circularidade se dá por um dado curioso: o estalajadeiro que tão calorosamente recebe Ismael em terra firme, no início da narrativa, chama-se Coffin (caixão, em inglês), e é a um caixão que ao final ele se agarra quando o navio é levado a pique pela baleia branca.

A história de Moby Dick é, de um certo modo, a história da humanidade em busca da eterna vitória do que ela julga que seja o bem contra o que ela julga que seja o mal. Ao contrário da visão de mar e de natureza que o leitor encontra em Júlio Verne, tanto em 20.000 léguas submarinas quanto em Viagem ao centro da Terra, ao falar do mar ali encontrado, é bem diversa. Aqui, o leitor enxerga o mar e a vida ali existente através do conflito de visões de mundo, testemunhado por Ismael. De um lado, está o velho capitão Acab, forte lobo-do-mar que abre mão de sua vida, de sua história em terra para perseguir o que para ele representa todo o mal, toda ferocidade do mundo, na figura de Moby Dick. Do outro, está Starbuck, que enxerga na baleia o animal que responde ferozmente aos ataques sofridos e que nada faz além de retribuir, na mesma medida, o ódio que recebe. Deste conflito sai ganhando o capitão, porque dele é a primazia do poder, e contra ele nada pode a sensatez de Starbuck, que lhe implora: "Oh" Capitão! [...] Não embarque nessa lancha. Não abandone o Pequod, senhor. Não prossiga por mais tempo nessa perseguição sem lógica. Veja bem, capitão: é um homem que não tem medo que lhe pede... E cheguei até a chorar, senhor" (MELVILLE, 1851; 1872: 179).

E choram todos, no final: pela matança das baleias, pela voracidade com que se busca a realização pessoal, pela perda de vidas, pela perda da ética, porquanto o capitão se nega, a certa altura, a abandonar seu objetivo em prol de ajudar o capitão do navio Raquel a procurar o bote naufragado em que estaria o filho do capitão que pede ajuda, e, em última instância, a perda de muitas vidas que nada têm a ver com o objetivo pessoal de um homem amargurado que teve sua vida ceifada não pela deficiência física decorrente de uma caçada, mas pela deficiência indelével que habitou sua alma e fez naufragar consigo o que lhe restava de humanidade.

Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Herman_Melville

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Volume 25 - Caçadores de cavalos - Zane Grey


Quem aqui já ouviu falar de um sujeito chamado Zane Grey? Até ler Caçadores de cavalos, e fã de filmes como sou, o único Zane de que tinha conhecimento era Billy Zane, ator que atuou em Titanic (1998) e Só Você (1994), com Marisa Tomei e Robert Downey Jr.

Este, no entanto, é bem mais profílico, no que diz respeito à produção, e muito mais antigo. Nascido em 1872, Pearl Zane Gray, natural do estado de Ohio, tinha boa origem americana, da qual uma das raízes advinha dos peregrinos quacres vindos em 1673 da Inglaterra, e escolheu ser escritor numa época em que fervilhavam, nos Estados Unidos, a tecnologia e a produção cultural.

Dono de um background muito americano e de leituras tais como Robinson Crusoé e as Histórias das Meias de Couro (Leatherstocking Tales, sobre as quais já falei na resenha do sétimo volume da coleção Clássicos da Literatura Juvenil), Zane fez mais do que simplesmente reproduzir a ideologia do país num escrito de aventura: ele ajudou a imortalizar o faroeste (ou Western) como modelo de consumo de massa que muito agradava aos americanos, e que mais tarde viria a ser, por muitos anos, fonte de ganha-pão de muitas editoras e da própria indústria hollywoodiana, quando mais nada parecia que poderia salvá-los do desmoronamento causado pela Depressão que se seguiu a 1929.

Nesta narrativa, o autor nos apresenta o herói Ben Ide, um jovem renegado pelo pai porque se nega a ser fazendeiro e se dedica, na Califórnia dos anos 1880, a domar cavalos selvagens. Por isso, vive nos ermos das terras desertas do estado californiano, que passa por anos de seca, e onde uma nascente em suas terras é a salvação de poucos gados e cavalos. Para companhia, conta com o exilado índio Modoc e com o misterioso Nevada. Ambos o auxiliam nas tarefas diárias e nos negócios com terras e cavalos.

Do outro lado da narrativa, há dois pólos: a mãe e a a irmã de Ide, e a sua namorada de infância Ina Blaine, que agora retorna do internato para moças. A família Blaine, antes de pobres fazendeiros e enriquecida nos últimos anos, mantém relações com o excuso Les Setter, que paulatinamente obriga o patriarca Hart Blaine a se comprometer financeira e legalmente com negócios dos quais ele não tem plena ciência.

A trama gira em torno de três tópicos principais: a recuperação de Ben Ide frente à sociedade e à família como proprietário de cavalos e terras e não como ladrão de gado, como Les Setter faz parecer; a recuperação dos negócios das famílias Ide e Blaine, que se vêem enroladas nas mãos de Setter; e o casamento de Ina com Ben.

De certa forma, a narrativa é muito parecida com o que hoje se encontra, por exemplo, na coleção Clássicos Históricos publicadas pelas editoras Harlequin e, no Brasil, Abril Cultural. Acredito, porém, que a possibilidade de que estes romances de consumo de massa existam hoje mais em função da inauguração de um gênero que Zane (que abandonou a carreira de dentista para ser escritor e publicar, em vida e postumamente, 54 obras) ajudou a fundar e que, mais tarde, escritores como Laura Ingalls Wilder viriam a perpetuar de forma ainda mais intensa -- ou, dependendo do ponto de vista do leitor e de sua ideologia política, virulenta, porquanto se usa um romance para elevar aspectos idílicos da vida no oeste americano sem que se coloque às claras, no caso de Wilder, assuntos muito graves, como fome, morte e necessidade de trabalho infantil. Zane é mais feliz no que diz respeito a este aspecto: embora ele mantenha um ar idílico e aventureiro dos caubóis solitários das montanhas do oeste, ele consegue mostrar que existe o lado dos enganadores e ladrões, e das mulheres que não são tão frágeis quanto porcelanas e que, por isso, tem seu papel fundamental desempenhado no processo de assentamento de uma família ou comunidade numa terra estranha e, muitas vezes, hostil. Ainda assim, seus romances sofreram, na época contemporânea de Zane, dura crítica justamente porque ele exaltava os valores morais acima da dura realidade da vida no oeste.

Esta visão era, na verdade, propícia ao contexto histórico de lançamento dos livros. Como eu comentei, até 1929, o mercado vivia os anos do florescimento cultural cosmopolita, a consolidação da indústria e o crescimento vertiginoso da economia, que se baseava no consumo desenfreado das então chamadas novas tecnologias. A situação mudou drasticamente quando a crise veio e abalou profundamente todas as estruturas da sociedade americana e, por isso, um dos modos de recuperar os valores que, em meio à miséria que corria solta o território, seriam capazes de fazer um povo se levantar unido e trabalhar por quase nada, em vez de se revoltar, era resgatar a velha história dos valores do homem que constrói o próprio sonho a partir de nada além de poeira e do suor do seu trabalho. Esse esforço ideológico realizado por escritores e por Hollywood foi muito bem acolhido por todos, e ajudou a [re]construir o país forte, seguro e poderoso que hoje conhecemos (e aí, é claro que não coloco questões políticas, econômicas ou trabalhistas em discussão, numa pequena resenha, mas que existiram, existiram sim e foram documentadas por historiadores e pela mídia).

Como vemos hoje, histórias como a de Zane desencadearam os heróis que vieram de outras eras e de outros contextos -- o caubói do espaço, o desbravador de planetas e terras inóspitas, e todo tipo de literatura que dá asas à imaginação de um público que, por sua característica etária, está se descobrindo e se afirmando em todos os sentidos. E, nesse sentido, obras como Caçadores de cavalos e Nevada (que veremos adiante) não só reafirmam uma nação, mas ajudam-nos a resgatar o espírito da identidade própria e da autonomia de ações em prol do bem -- ainda que utopicamente.

Fonte de informações sobre o autor (em inglês): http://en.wikipedia.org/wiki/Zane_Grey