Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Volume 15 - Sem Família - Hector Henri Malot

Se há um gênero que aflorou e se desenvolveu de forma vigorosa no século XIX, este foi o romance de formação (ou de iniciação, de acordo com a definição vigente para cada um). Para aqueles que não sabem, a expressão "romance de formação" foi cunhada por um alemão em 1820, de nome Morgenstein, e serve para designar a história cujo enredo apresente um protagonista e sua história de crescimento e desenvolvimento físico, psicológico, emocional, educacional, moral e até mesmo religioso.

Para que seja um romance de formação, a obra segue mais ou menos um "esquema", por assim dizer: a personagem principal, ainda pequena, sofre algum infortúnio e é afastada do convívio no qual se sente segura e feliz. A partir daí, sozinha, passa por diversas agruras e problemas, que servem para colocá-la à prova e para formar o seu caráter, até que, crescida, ela possa relatar a história que o leitor está acompanhando no livro que lê. Ora, estou hoje aqui para tecer minhas observações acerca do décimo-quinto volume da coleção Clássicos da Literatura Juvenil e, a trinta e cinco volumes do final, posso recapitular a vocês o quanto este gênero é do apreço da literatura juvenil: A Iha do Tesouro, O Conde de Monte Cristo, David Copperfield, Ben-Hur, Huck Finn e agora Sem Família apresentam este gênero literário para seus leitores -- o que equivale, pois, a 40% das obras publicadas até este volume.

De forma muito semelhante a Dickens -- e até porque eram contemporâneos, posto que o escritor francês Hector-Henri Malot nasceu em 1830 e faleceu em 1907 --, o autor de Sem Família (e de mais outro tanto de obras que somam mais de 60 publicações) se vale do contexto social e econômico para criar a atmosfera e o enredo do qual o menino Renato surge, numa vila de camponeses situada na inóspita região central da França. Criado por Maria Barbarino, ele só vem a saber que é adotado quando seu suposto pai, Jerônimo Barbarino, volta de Paris e se depara com o menino na casa. Originalmente, o bebê Renato havia sido encontrado na vila, abandonado em roupas de luxo; Barbarino havia-no tomado sob custódia porque se interessara pela possibilidade de um pagamento como recompensa caso a família viesse a encontrar o garoto. Agora, 8 anos mais tarde, pobre e desempregado devido a um acidente que o deixara "aleijado", Jerônimo se vê na incumbência de se livrar de mais uma boca para alimentar e, por isso, aluga-o a um velho italiano, cantor e ambulante que apresenta "espetáculos" teatrais e pantomimas com músicas e com sua trupe de animais -- o cão Capi de pêlo curto e branco, chefe do grupo; o garboso e negro Zerbino e a poodle Dulce, além do espero macaquinho de sugestivo nome Boa-Vida, com sua farda de general. Vitalis é a tradução dos valores de liberdade, tenacidade, amor, compreensão, carinho, coragem, determinação e fé.

Através do velho cantor ambulante e de um caminho que traça muitas regiões da França, Malot incute no protagonista o respeito ao próximo, o amor pela educação e pelas boas consequências que dela surgem, tais como a independência e o planejamento de uma vida de viagens e de trabalho, e questiona o preconceito que as pessoas da época tinham contra os artistas ambulantes, normalmente encarados como vagabundos, ladrões e, muitas vezes, assassinos (não nos esqueçamos dos exemplos dos ambulantes de Huck Finn!). Ao mesmo tempo, em uma França onde vigoram o liberalismo e a opressão contra as classes miseráveis, em meados do século XIX, Malot ridiculariza a figura policialesca, não por desprezá-la ou aumentar seus defeitos, mas por rechaçar toda a autoridade presumida que possuem sobre outrem sem que lhe dê a chance de justificar seus atos. Por isso é que, quase no final da Primeira Parte do livro, quando Renato está com cerca de 10 anos, Vitalis é preso por dois meses e o garoto se vê só e com a responsabilidade de cuidar de si e dos animais. A intervenção aparece na figura da Sra. Milligan e de seu adoentado filho Artur (vítima de coxalgia), que assistem a uma apresentação de Renato, na estação das águas francesas, e os convidam a permanecer com eles até que Vitalis seja solto. A afeição entre todos cresce e a dama deseja ficar com Renato, mas Vitalis se nega, pois acredita que a educação pela liberdade é melhor do que a conformação do menino à casa, onde seria tido como um criado de luxo.

Sendo este um romance de formação e de estrutura episódica, o leitor deve sempre estar preparado para a infelicidade seguinte. Por isso é que Zerbino, Dulce e Boa-Vida vêm a morrer, de forma que o velho não vê outra alternativa a não ser tentar sublocar Renato a um italiano de nome Garófoli, em Paris, durante o inverno. Sua esperança é a de poder ganhar um mínimo com que iniciar uma jornada de aulas de música para jovens parisienses ao mesmo tempo em que deverá treinar novos animais para que na primavera retomem seu rumo. A cena é bastante propícia para Malot escancarar a situação de miséria de crianças urbanas, locadas a patrões que as exploravam ao máximo como se fossem burros de carga, cobrando-lhes quota diária de vencimento, fosse em esmolas ou "apresentações" de hamsters, canções, truques ou o que fosse. A descrição da entrada de Renato em Paris, sempre em primeira pessoa do singular, é interessantíssima, porque mostra não a gloriosa cidade das luzes, mas uma periferia imunda, esfumaçada, repleta de ruelas tortas, escuras, escusas em cujos lugares habitavam todo tipo de gente pobre de moral duvidosa, incluindo os padrones como Garófoli, em mansardas malcheirosas, apertadas, sem estrutura alguma nas quais pobres crianças aprendiam a lei do mais forte ou sucumbiam -- literalmente -- a ela. Embora ela transcorra em poucas das 360 páginas do livro -- a adaptação/ tradução mais longa da coleção --, a conversa de Renato com Matias, o garoto doente e mirrado que toma conta da panela trancada com o ensopado do dia, no fogo, a cena da chegada dos meninos à mansarda e o castigo em chicotadas desferidos sobre eles, valendo uma chicotada a cada moeda que lhe faltasse na quota do dia, tudo inspira horror e abjeção.Esta é a cena que Vitalis encontra ao buscar retornar à mansarda e, por isso, mesmo diante da penúria, nega-se a deixar o garoto com seu conterrâneo.

O resultado deste sentimento nobre é a morte, por frio e fome, de Vitalis, e a congestão pulmonar de Renato. Este é o episódio que abre a Segunda Parte do livro. Acolhido pela família Aquino, Renato encanta-se pela simplicidade, pela disciplina, pelos momentos de distração com a família, após o trabalho, e sobretudo por Lise, a caçula muda com quem estabelece uma ligação inexplicável. Durante dois anos ele permanece com o jardineiro Pedro Aquino e com seus filhos Eliana, Benjamin, Aleixo e Lise, e só ganha as ruas novamente, em companhia de seu cão, Capi, quando o pobre homem é preso por dívidas, por não conseguir quitar a hipoteca de sua casa e de suas terras de plantio, e as crianças são distribuídas entre os familiares. Novamente, a crítica social chega na minúcia do dia-a-dia, e o narrador explica que os camponeses, que fazem de tudo por seus familiares, não se sentem na mínima obrigação de ajudar ao próximo em seus infortúnios quando não se trata de família.

Nesta nova reviravolta, Renato encontra Matias, o garoto doente que morava com Garófoli. Recém-saído de um grupo circense, Matias explica que o italiano, de quem é sobrinho, havia alugado o garoto a um circo pequeno depois que este se motrara muito doente para executar quaisquer tarefas que lhe rendessem a quota diária a pagar ao padrone. Embora se deva aqui guardar as devidas proporções, o leitor não pode deixar de pensar no contexto brasileiro, quando, nos períodos colonial de do Império, vigorava o que era conhecido como "escravo de ganho", ou seja, aquele que devia cumprir uma quota diária de dinheiro vendendo doces, balas, carne, ou até mesmo se prostutuindo para entregar a quantia ao seu senhor no final do dia; a diferença, aqui, é que os meninos não conquistavam a liberdade comprando-a diariamente, como ocorreu no Brasil quando o sistema passou a ser regulamentado pelo Estado, mas viam-se livres através da morte ou caso os padrones fossem presos -- como ocorre no caso de Matias. Juntos, ele e Renato percorrem outras tantas regiões da França visitando os Aquino e passando por mais uma série de peripécias que contribuem para que Renato reafirme os valores que aprende com Vitalis acerca de liberdade, moral, caráter e lealdade. Dessas tantas aventuras, os quatorze dias que passa soterrado na mina de carvão em Cevènnes é apenas um gostinho da vida e dos problemas que os mineradores passavam e do que, mais tarde, Émile Zola viria tão bem a retratar.

Neste romance, é muito interessante o leitor reparar na caracterização das personagens e nos lugares descritos através do romance. Se acompanharmos em um mapa da França, percebemos a clara intenção que Hector Malot teve de descrever as regiões e os povoados de cada região: os camponeses centrais, os agricultores de Bordoux, os marinheiros do mediterrâneo e da Normandia, os urbanos parisiences, o provincianos da região de Rouen (de onde, aliás, Malot se origina), e os mineradores de Cevènnes. Numa evolução, é possível ver a personagem ir e vir, delineando cada região, cada grupo, tecendo comentários aqui e acolá acerca da economia e do modo de vida deles, e de como reagiam às apresentações de Vitalis & companhia e, mais tarde, de Renato & companhia (Matias e Capi). De um modo geral, tais reações, da camponesa ao juiz, do jardineiro à rica dama, reflete aquela da fábula da cigarra e da formiga (e eu penso nisso a propósito de uma aula que tive na faculdade, recentemente): as formigas francesas trabalhadoras regalam-se com a música e as pantomimas que a cigarra apresenta para aliviar seu dia-a-dia, mas não deixam de desprezar este trabalho porque consideram que o seu -- seja plantar, cuidar de uma casa, trabalhar numa mineradora, ser um policial, ou declaradamente possuir muito dinheiro -- sem dúvida possui muito mais valor. Porque, embora Malot quisesse criticar algumas das visões da época, este tipo de´relação política e econômica, que reflete tão bem na moral, acaba por escapar pelas brechas da narrativa.

Eventualmente, Renato descobre que é inglês e segue para Londres acompanhado de Matias e Capi, somente para descobrir que pertence a ma família de saqueadores e contrabandistas. A Londres descrita por Malot não difere muito do quadro descrito por Dickens em seus romances de formação eminentemente londrinos, e mediante mais alguns détours é que o leitor descobre que, na verdade, tudo não passa de armação, e que Renato é na verdade o filho raptado da rica Sra. Milligan, numa tentativa desesperada de Jaime Milligan, seu cunhado, fazer com que a fortuna da família viesse parar em suas mãos. Nesse caminho, Renato descobre que Lise conhecera a família Milligan, ainda na França, e passara a morar com ela, e descobre também que a família de salteadores havia sido na verdade responsável pelo seu rapto e viagem clandestina à França, a mando de Jaime.

Como não poderia deixar de ser, num romance em que o sentimentalismo transborda em cada página, tudo termina muito bem, e Renato se casa com Lise, então curada de sua mudez. Matias torna-se concertista internacional, Artur cura-se e se torna jogador profissional de golfe, casando-se com Cristina, a irmã de Matias. Num encontro para celebrar a vida e o batizado do filho de Renato e Lise, todos os envolvidos na história se encontram e uma apresentação musical "à moda antiga" é feita, da qual o dinheiro arrecadado é destinado à criação de um Fundo para a Casa do Pequeno Músico Ambulante. O final feliz de Sem Família está bem ao gosto de jovens e é bem irreal, se pensarmos, mas não deixa de transmitir a mensagem de fé e esperança no respeito às diferenças sociais e econômicas e na esperança de um mundo melhor e mais igualitário.


Fonte de informações sobre o autor: http://es.wikipedia.org/wiki/Hector_Malot (em espanhol)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Volume 14 - Robin Hood (sem autor)


Robin Hood é o décimo quarto livro publicado na coleção Clássicos da Literatura Juvenil e o primeiro desta coleção a não pertencer a um autor definido. A história é uma composição adaptada por Monteiro Lobato com base nas lendas e nos vários registros da história do maior bandoleiro inglês que roubava dos ricos e opressores para dar aos pobres e assistir as mulheres e aos órfãos.

A história do bandido que virou herói nacional remonta do século XIII, coincidindo com a época em que o Rei Ricardo III, mais conhecido como Ricardo Coração de Leão, viveu e combateu cruzadas contra os mouros. Nessa época, o então duque de Huntington, destituído de seu título e de seus bens devido a armações políticas, vê crescer seu filho Robert of Lochsley e o educa para ser um guarda real das florestas de Nottinghamshire, ao mesmo tempo em que a esposa incute no filho a boa educação da corte que se espera de um nobre. O coração do garoto está nas florestas de Sherwood, onde passeia com o primo e com Marian, a filha do homem que havia roubado o título e os bens do pai, e por quem ele era apaixonado. Sucede-se que, aos 19 anos, novamente por motivos políticos e financeiros, Robin e seus pais são levados sumariamente à prisão, de onde ele e a mãe saem no dia seguinte, mas não o pai.

As consequências de tal acontecimento são as que armam o palco para o enredo repleto de aventuras. Robin passa a se misturar com outros foragidos injustiçados em nome do Estado e da Igreja; exímio atirador com arco-e-flecha e cavaleiro por nascimento, torna-se o líder de um bando que se inicia em 40 e chega a 140 homens ao longo dos anos, todos identificados pela destreza com armas, pela justiça que fazem aos pobres e proteção que oferecem aos desamparados, pelo bom-humor e coragem extremos, e pela vestimenta verde dos tecidos que compravam em Lincoln, com que arregimentar a todos.

Os maiores inimigos de Robin Hood estão localmente representados, um para cada instituição: o xerife de Nottingham para o Estado, e o Bispo de Hereford para a Igreja. Ambos vivem basicamente às custas dos impostos que cobravam dos nobres e da população mais pobre, e dos espólios que à força tomavam daqueles que não "pagavam devidamente" seus impostos. O xerife via em Robin mais do que alguém que desafiava suas leis: via nele o homem que havia desprezado sua filha em nome de uma outra dama (Marian), por ocasião do torneio de arco-e-flecha em que Robin havia ganhado o primeiro prêmio e ofertado à sua amada. Ao fazer isso, não só ele humilha o xerife, como deixa de nomear sua filha a rainha da região, pois ao vencedor cabia ofertar o prêmio àquela que seria rainha da região. Devo lembrar que estamos falando de uma Inglaterra entre os séculos XII e XIII, organizada em feudos e interessada em se estabelecer como nação, lutando contra mouros, contra saxões, e contra reincidentes de países vizinhos, como Escócia e Irlanda.

As aventuras de Robin Hood se desenrolam numa sucessão de tapas, lutas, pilhérias com o xerife e o Bispo, resgate de amigos, e auxílio aos necessitados. Num dado momento, destituída dos bens de seu pai e ameaçada de ter sua honra tomada, Marian viria a se juntar ao bando de Robin e com ele teria permanecido até que morresse.

Fato curioso de ser notado nesta lenda é que, assim como os santos, Robin Hood tem origem nobre e não hesita em ir em socorro dos mais necessitados. Na verdade, esta origem é o que parece ter-lhe valido muitas das ocasiões das quais se safa, quando, por exemplo, explica à Rainha Eleanor qual é sua origem, e quando faz o mesmo ao nobre Richard de Lea e ao próprio Ricardo Coração de Leão. Dito de outro modo, significa dizer que a condição social e econômica da qual Robin Hood teria se originado é responsável pelo discernimento, pelo caráter e pelas escolhas que faz em favor da distribuição mais justa de bens materiais, quando naquela época (bem, sabemos que não só naquela época...) justamente os que eram mais abastados detinham o poder de vida e de morte do povo e ainda assim não tratava tal responsabilidade com o respeito e a atenção devidas.

Com relação às suas ações contra o clero, também é preciso salientar nas obras acerca do herói a sua preferência e a sua devoção às mulheres, o que nos leva a entender a personagem segundo a tradição da religião pagã celta, vigente na Grã-Bretanha e somente aos poucos, e à custa de muitas manobras e sacrifícios, foi absorvida pela Igreja Católica e posteriormente pela anglicana. Robin era, afinal, um herói que respeitava a natureza e nela vivia, e que reverenciava as mulheres e os amigos fiéis, e não a uma Igreja cujo Deus era terrível, temido, cultuado em locais fechados, como abadias e igrejas, e que parecia justo somente aos que possuíam algum dinheiro.

A história contada por Monteiro Lobato se encerra com dois momentos cruciais: o casamento de Robin e Marian e a dissolução do bando, que tem seu trabalho reconhecido pelo Rei Ricardo III e que é por ele nomeado guarda real; e a morte de Marian, pela peste, a perambulação de Robin pelas terras ermas e finalmente sua morte, causada por infecção e por sangramento -- este causado pela filha do xerife de Nottingham, que se havia tornado freira e jamais havia esquecido a recusa de Robin e a humilhação que qual havia passado. Para este trabalho, Monteiro Lobato parece ter se valido de uma obra do século XVIII, intitulada "A Morte de Robin Hood" na qual o autor descreve Kirkslee, na foresta de Barnsdale, ao lado oeste do condado de Yorkshire, como local de descanso final do herói.

Embora haja muitos registros -- e muito, muito antigos, datando de 1247, por exemplo -- sobre Robin Hood, jamais se pôde provar a existência do homem Robert of Lochsley, assim como jamais se pôde provar a existência de Arthur Pendragon, outra personagem que oportunamente discutiremos neste blog. O importante a salientar, no caso de Robin Hood, não é a origem nobre e o caráter ou o bom coração da personagem (embora tudo isso sempre conte para a exaltação da figura nacional que ele se tornou através dos séculos), mas o fato de que, curiosamente, foi na Inglaterra que vimos nascer o primeiro herói literário socialista e, se não ateu, descrente do Deus católico. A tradição de um país parece se manter e, séculos mais tarde, seria ali que a humanidade testemunharia a pressão da Revolução e do capitalismo e os levantes socialistas e comunistas contra os oprimidos, como também tivemos oportunidade de acompanhar em algumas das obras que já passaram pela coleção Clássicos da Literatura Juvenil.

O que eu espero é que, a esta altura, as pessoas tenham entendido, é que um livro não é mera representação da imaginação ouu simples imitação do gênio de outro: mais do que isso, ele é fruto do seu próprio tempo, e por isso responde em estilo, em tema e tem tratamento de assuntos ao que corria à época de sua pulicação. Ou, dizendo de maneira mais direta, um livro ou qualquer outro objeto de arte é sempre o resultado de seu tempo, é a manifestação das condições de sua própria produção. Se a Inglaterra não fosse um lugar oprimido, com feudos, com guerras e com a peste, Robin Hood não teria surgido. Do mesmo modo, se a Revolução Industrial e o expansionismo inglês não tivessem levado hordas de crianças a trabalharem ou a ficarem abandonadas, sub-empregadas, Dickens jamais teria material para trabalhar. Ou, ainda, se a Grécia não fosse o império em expansão, não haveria Odisséia.

Economia, sociedade, história, costumes: tudo se mistura num grande caldeirão cultural e nos dá o caldo que temos a felicidade de poder usufruir para não só ter momentos de lazer, ou para que sirva de material de base à indústria cultural, à fábrica de entretenimento que são as revistas, os jogos, os produtos comerciais, o próprio cinema, mas para que possamos aproveitar a chance de aprender com eles, a fazer as conexões, a entender o nosso passado e, assim, nos tornarmos mais conscientes da nossa responsabilidade frente às nossas ações. É nisso que eu penso quando vejo uma lenda tão antiga que ecoa até hoje e nos faz pensar no melhor de cada um de nós.




fonte de informações sobre a lenda de Robin Hood: http://pt.wikipedia.org/wiki/Robin_Hood

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Volume 13 - Beleza Negra - Anna Sewell


Beleza Negra é o décimo terceiro volume publicado na coleção Clássicos da Literatura Juvenil. Escrito por Anna Sewell e publicado em 1877, a obra relata de forma bastante comovente a trajetória do cavalo de raça cujo nome é Beleza Negra, na Inglaterra do século XIX.

O foco narrativo é em primeira pessoa, o que equivale a dizer que, curiosamente, é o cavalo que narra a história, humanizando-a porque traduz suas experiências, pensamentos, crenças e sentimentos como as de um humano. Assim, ele conta das desventuras de sua vida desde o momento em que nasce numa boa fazenda até o momento em que, após muitos problemas de doença, de espancamento, de desmazelo e de ignorância por parte dos diversos cocheiros para os quais trabalha, ele encontra uma boa família que o acolha. Não por acaso, o cocheiro desta família é senão aquele que, no início da narrativa, havia-o conhecido em seus tempos de glória, e por isso reconhece seu valor e trata-o conforme o livro explica que os animais devem ser tratados. Nesse ínterim, Beleza Negra trata também das mazelas de uma égua chamada Gengibre, desde sua chegada intempestiva ao celeiro onde ele morava, até quando a vê morta.

A história criada por Sewell foi fruto de um profundo conhecimento sobre cavalos e de seu amor aos animais. Além disso, a alta dose de religiosidade e de moralismo à obra dá-se também devido à criação da escritora, que advinha de família quacre (ou Quacker, como é conhecida a religião). Sua ligação com os cavalos aumenta porque, tendo se acidentado na juventude, passa a depender deles e decorrentemente aprende muito sobre a realidade das criações, das vendas, das rotinas dos referidos animais, bem como das atrocidades cometidas contra eles.

Creio, porém, que o tom piegas desta narrativa aclamada pela literatura infantil e juvenil não é o que mais importa, em termos de literatura. Certamente, Sewell prega enfaticamente contra a bebida, contra o trabalho aos domingos, contra a falta de respeito aos empregados, contra os maus tratos a homens e animais e a favor da humanidade, do amor, da fé e da união familiar. Acontece de a obra ser um verdadeiro achado no que diz respeito ao quadro econômico e social inglês da primeira metade do século XIX, pois ao narrar a trajetória de Beleza Negra, Sewell delineia todas as etapas pelas quais um cavalo pode passar e, com ela, tudo o que as cercam: o entorno arquitetônico e econômico das casas e dos senhores de cavalos, das baias, dos cavalos, da qualidade e da conservação dos animais, das rações dadas, dos tipos de trabalho em que eram empregados de acordo com sua qualidade, sua criação e seu estado de conservação, e o mundo do trabalho e da economia que gira em torno disso.

O leitor percebe, ao terminar a leitura, que um cavalo de raça bem criado vale 100 guinéus, mas um cavalo que já sofreu muito na vida, que se tornou defeituoso por estafa, negligência do dono ou até mesmo crueldade, vale no máximo 5 libras, ou então é levado ao esfoladouro para que lhe aproveitem o couro.
A narrativa revela de forma escancarada que tanto homem quanto animal são tratados como produtos negociáveis por dinheiro: um homem judia de seu cavalo sobrecarregando-o porque tempo de entrega de produtos custa dinheiro. Um homem judia de um cavalo ao mantê-lo em rédea curta porque a moda aristocrática londrina não aceita que seja de forma diferente e, portanto, como consumidores do produto que melhor pagam por ele, exigem que o sacrifício do animal seja feito, sem ligar para o fato de que isso encurta a vida do cavalo. Do mesmo modo, um cocheiro de carro de aluguel judia e esfalfa o animal, chicoteando-o para que corra pelas ruas de Londres porque deve primeiro alcançar a meta diária de 18 xelins para pagar ao dono da frota para depois conseguir angariar o dinheiro do dia com que sustente sua família e a si.

Neste escandaloso processo de reificação, até mesmo a religião não deixa de se misturar com a política, seja de forma sutil ou declarada: um homem como o coheiro Reuben Smith é culpado por embebedar-se e é sua culpa morrer porque não segue as leis de Deus; e se sua mulher com cinco filhos fica desamparada, foi porque o marido lhe faltou, e não porque o dono da propriedade, vendo-a sem meios de subsistência, tenha lhe dito que se arranjasse como pudesse, de forma que ela tenha ido para uma casa de indigentes. No entanto, um homem que acredita em Deus e respeita o dia santo para descanso e para permanecer com a família é recompensado porque ao proporcionar descanso a si e ao animal, trabalha com mais vigor durante a semana e isso lhe rende mais dinheiro. Em nome da dignidade, da união familiar, da fé, do respeito cristão e de poupar homem e animal, o cocheiro pode até mesmo falar em todos os cocheiros da cidade pararem de trabalhar num domingo para que a aristocracia perceba seus abusos e desmandos para com os cocheiros e seus animais em tílburis de aluguel (ora, eo que é isso senão uma 'greve'? A autora não usa a palavra, mas a ideia está no texto!). Por isso é que um homem assim, tal como é o velho Jerry, condutor de tílburi de aluguel em Londres, pode se dar ao luxo de recusar corridas que judiariam de seu cavalo, e mesmo assim, no final, não se vê financeiramente prejudicado, já que Deus provê para que ele seja sempre amparado.

No todo, Beleza Negra surpreende porque ultrapassa o limite do piegas e consegue aliar esta discussão bastante séria sobre o trabalho, o dinheiro, a política, a religião e as classes sociais à linguagem bastante didática e agradável do narrador, e considero que o segredo do sucesso do livro e de sua permanência deva-se a esta química bastante homogênea, no que inicialmente se supunha que pudesse causar dissabor para quem lê a obra. Acredito, ainda que este caráter histórico e materialista da obra tenha passado consideravelmente ileso através das décadas, e que o mote religioso e caridoso tenha pesado mais para que ele não fosse censurado ou banido, de forma que hoje nós, leitores, possamos testemunhar seu valor, como tantos outros o fizeram.

Fontes de informação sobre a autora:

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Volume 12 - Aventuras de Huck - Mark Twain



Aventuras de Huck é a sequência escrita pelo autor Mark Twain das histórias narradas em Aventuras de Tom Sawyer. A terceira resenha que apresentei neste blog discorre justamente sobre Tom Sawyer, o terceiro volume lançado na coleção Clássicos da Literatura Juvenil, e cheguei mesmo a mencionar um pouco do caráter de Huckbleberry Finn e da relação de amizade entre ele e Tom.

Neste romance, o autor coloca como linha principal a fuga de Huckeberry da casa da viúva Douglas, que havia se transformado em sua guardiã, junto com o negro Jim. Este era, na verdade, um escravo da irmã da Sra. Douglas, a srta. Watson, que morava com eles, e desejava escapar para fugir do estado do Missouri e chegar ao estado de Ohio, que era livre das leis escravagistas, e onde sonhava em adquirir dinheiro e comprar a liberdade da esposa e do filho. Ambos haviam sido deixados no lugar de onde ele havia sido previamente comprado. Para conseguir realizar a façanha de fugir da viúva e também do pai alcóolatra, que havia retornado à cidade e estava requerendo a pequena fortuna que Huckeberry havia encontrado com Tom Sawyer (episódio contado no desfecho de Aventuras de Tom Sawyer), Huck arma uma cena de crime com sangue, cabelo, e rastros no chão, como se tivesse sido assassinado e jogado no rio Mississípi, e foge com Jim. Por um tempo, ficam na ilha Jackson, local em que ele havia se refugiado com Tom anteriormente, e depois segue o curso do rio numa jangada até encontrar dois vigaristas profissionais que se fazem de rei e duque e ludibriam as pessoas para roubá-las ou fazer trapaças. Embora tente se livrar de ambos, não obtém sucesso da primeira vez, e somente com maior esforço o consegue, porém não sem prejuízo: antes de sumirem, vendem o pobre negro como escravo na cidade em que estão, já no estado de Illinois. Ora, acontece de serem os novos donos de Jim justamente os tios de Tom Sawyer, e que, por um golpe do destino, estão justamente aguardando a chegada deste para que passe férias com eles. Huck resolve fingir-se de Tom e trata de encontrar o amigo pela estrada antes mesmo que chegue à casa dos tios. Uma vez encontrado numa carroça, a caminho da casa dos parentes, Tom assusta-se com Huckleberry, pois o considerava morto, e depois de inteirar-se sobre o quiprocó armado pelo amigo em favor de libertar o escravo, resolve não só colaborar para armar um plano de resgate, mas a contribuir "substancialmente" para que este dê certo. Baseando-se na sua mente infantil fervilhante de histórias épicas de heróis, saqueadores e piratas, Tom logo inventa de cavar um túnel com facas, serrar a corrente, escrever mapas em camisas para deixar no local em que Jim estava cativo (uma barraca nos fundos da propriedade), serrar o pé da cama, e libertar o escravo, deixando uma carta de despedida e uma flor regada com lágrimas do prisioneiro. Huckleberry seguiria pelo lado mais prático: se era uma questão de cavar e não simplesmente de roubar a chave do cadeado ou de arrancar umas tábuas do barracão, que fosse feito com pás e picaretas que estavam disponíveis do lado de fora do local, e de simplesmente levantar o pé da cama e tirar dali a corrente que prendia o negro ao móvel. A diferença entre as duas personagens é, de fato, baseada naquela presente entre Dom Quixote e Sancho Pança, e os delírios e diabruras de Tom assemelham-se com as peripécias malucas do pobre senhor espanhol, embora haja aí muito mais esperteza e malandragem por parte dos dois garotos, que conseguem enganar a todos e a causar tamanha confusão, que suas ações têm como consequência, dentre outras, fazer com que o tio ajunte homens armados na cidade para dar cabo ao "bando" que viria resgatar o escravo durante a madrugada, conforme uma "carta anônima" deixada por eles ao tio havia revelado.

A consequência da brincadeira é uma perseguição ao escravo e aos meninos, e mais aventuras acontecem, até que a tia Polly chega à fazenda do irmão e da cunhada, em busca de Tom, e revela a todos aquilo que Tom já sabia: que há dois meses a srta. Watson havia morrido e que, em testamento, havia alforriado Jim. O garoto sai-se com a explicação de que a aventura é que faz o herói, e que por isso nada havia revelado ao amigo e ao escravo, e todos voltam à cidade fictícia de St. Petersburg, onde esperavam também a Huck, para lhe tomarem sob guarda e criação. Este, no final, despede-se dizendo que mil vezes seria melhor ver-se livre e ir para o Oeste, aventurar-se no Território Índio. Como o leitor pode perceber, todos os elementos que fizeram de Tom Sawyer um sucesso encontram-se aqui: as aventuras, o pensamento inconsequente e os mirabolantes planos infantis, a irreverência e a ironia de Twain, mais marcada do que nunca por Huck, e sobretudo a pintura de um cenário e de uma sociedade que já estava decadente para a época e que criticava o regime escravocrata.

Mais do que irônico e crítico de uma sociedade conservadora, o autor foi um visionário não só porque entendia que homens devem ser livres e viverem em condição de igualdade, mas porque ele captava a essência do sul, com todas as cores de sua localidade, com seu linguajar próprio, advindo das gerações de misturas e de cultura advinda dos negros, para transpor ao livro. Daí vêm, por exemplo, toda a carga de "feitiçaria" e de crendices do romance, que se contrapõe sobremaneira à religião protestante dos brancos, e as palavras empregadas pelo autor, que não denotam, como alguns críticos pensam, preconceitos, mas contribuem à autenticidade da caracterização e da atmosfera sulista. Não se pode olhar com os olhos de quem conhece a trajetória histórica de um país e considerar que "nigger" (negro) seja palavra empregada para ser compreendida pejorativamente e com a mesma carga que se entende hoje, nos Estados Unidos. E preciso despir-se do nosso próprio preconceito e dessa carga histórica de conhecimento e tentar entender que, naquela época, não havia o peso de todo um discurso em favor de minoria ou de grupos étnicos, e tampouco a consciência de que um negro fosse um homem e não uma mercadoria a ser barganhada. Quanto a isso, o próprio autor se coloca na fala do próprio negro Jim para falar da condição do Homem e do modo como ele fala: num episódio em que Huckleberry, quase iletrado, compreende que um francês fale "diferente" dele, assim como um cachorro fale diferente, ou um outro animal, Jim contra-argumenta e lhe diz que não entende como isso possa acontecer, porque cachorros não são gente, mas os franceses são, e portanto eles deveriam entendê-los. É clara a alusão do autor não só ao egocentrismo americano de achar que só eles podem ser entendidos, mas ao tratamento dado aos brancos e aos negros, porque quem enuncia essa fala é um negro escravizado.

Desse modo, o que entendo ser o foco de Aventuras de Huckleberry Finn é a ânsia pela liberdade, da mais óbvia à mais recôndita: pela liberdade de viver com dignidade, e não como escravo comprado, como mercadoria; a liberdade de viver segundo suas vontades; a liberdade de seguir suas regras e suas crenças, e não de obedecer à lei e à religião porque assim manda a sociedade (se for para fazê-lo, que seja feito por fé e concordância, e não por imposição e ignorância); e a liberdade, sobretudo, de escolha sobre qualquer opção, esperando-se que a consciência humana levem o indivíduo às escolhas em favor da verdade, da justiça, da amizade e da lealdade, tal como o faz o garoto Huck, que mal sabe ler e contar, mas que muito pode ainda hoje nos ensinar sobre cada um destes conceitos.

Fonte de informações sobre o autor:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mark_Twain