Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Volume 37 - Os irmãos corsos - Alexandre Dumas


Muito já se disse e já se ouviu falar da ligação especial e inexplicável existente entre irmãos gêmeos. Nenhuma, porém, parece ser como esta composta pelas mãos de Alexandre Dumas, pai, autor de várias outras obras famosas e que, em 1844 entregou aos leitores a história d'Os irmãos corsos, trigésimo-sétimo volume da coleção Clássicos da Literatura Juvenil.

Embora esta não seja uma das grandes obras de Dumas, pai, tampouco fica à sombra das outras. Verossimilhança à vida de escritor e viajante não falta: o protagonista é um certo Alexandre, sem sobrenome, francês, escritor internacionalmente famoso, que está há mais de um ano viajando, descendo o mapa da França, até que chega à Córsega, este pequeno país reclamado como parte da França, mas que fala um dialeto parecido com o italiano. O ano narrado é 1841, e a descrição sobre a geografia física, a atmosfera, as casas, a gente, a história e os costumes da Córsega são de encantar o leitor, ávido por aventura e que vê, na figura de Luciano de Franchi, um verdadeiro corso e um homem acima de tudo honrado e corajoso. Defensor dos costumes corsos, e até mesmo da polêmica vendetta (a secular briga entre famílias que visa a defender a honra até que todos de uma família tenham sido mortos em brigas), Luciano só abandona sua vontade para atender ao irmão gêmeo, Luís de Franchi, que é em tudo, menos na aparência, diverso do irmão. Luís é homem de Letras, estuda para ser juiz, é de natureza delicada e nunca se encantou pela ideia de pegar numa pistola ou num florete (espada). Estudando em Paris, pede ao irmão que aplaque a ira de duas famílias rivais para que a disputa acabe.

Alexandre fica na Córsega até que este episódio singular aconteça,e testemunha até mesmo um casamento à la Romeu e Julieta entre os filhos das famílias antes inimigas, e depois reinicia seu caminho de volta à França, mas não sem antes saber do aspecto mais curioso da relação entre os irmãos Luciano e Luís: nascidos com os braços grudados, foram separados com o bisturi, mas isso não os desligou de fato, porque um consegue sentir a dor física e espiritual do outro, ainda que nada lhe seja contado. Além disso, há ainda um fato mais assustador: todos os homens da família de Franchi são "presenteados" com o dom de verem os parentes mortos, que vêm para lhes avisarem de suas mortes. São eles os últimos de Franchi, com exceção da mãe Savília, mas como esta é uma mulher, não herdou o dom e, por isso, depende da palavra um do outro para que possa saber que os filhos estão vivos e bem.


Ao retornar à França, Alexandre finalmente conhece Luís de Franchi, mas a situação não é tão feliz: perdido de amor por uma senhora já casada com um grande amigo, Luís se vê diante da tarefa de protegê-la enquanto este seu amigo está viajando a trabalho, mas a senhora, levianamente, apaixona-se por um dos grandes conquistadores da corte francesa. A noite em que Luís resolve travar conhecimento com Alexandre é a mesma em que, para salvar a honra do amigo e de sua esposa, ele é desafiado para um duelo. Embora Alexandre tente dissuadir os padrinhos do oponente, exímio atirador e esgremista, a desistir do duelo -- sem, é claro, que Luís tenha pedido ou saiba desta intervenção --, nada o demove de "limpar sua honra" e, dois dias depois, pela manhã, os dois oponentes vão à floresta de Vincennes para acertarem as contas. O grande senão deste episódio é que Luís já sabia de sua morte certa, pois na noite anterior havia recebido a visita do pai, que viera para lhe avisar de que seria morto no da seguinte. Assim, antes que se dirija ao duelo, escreve uma carta à sua mãe contando-lhe que havia sido acometido de uma febre cerebral e que, á altura em que ela recebesse a missiva, ele já estaria morto. Uma vez tendo resolvido seus negócios, parte corajosamente em direção à sua morte, tendo feito seus padrinhos, Alexandre e um amigo corso que vivia em Paris, jurarem que não contariam a Luciano sobre o duelo, pois este desejaria ir à desforra e correria o risco de morrer também.

A tentativa de Luís, porém, é vã: sequer uma semana inteira se passa antes que Luciano, o corso que jurara não sair jamais da Córsega, bata às 11 horas da noite em casa de Alexandre, certo da morte do irmão. Não havia, contudo, recebido a carta enviada por Luís, e sim recebido o aviso do próprio irmão. Explica ao escritor que, no dia e no minuto em que Luís fora morto, ele sentiu o impacto da bala no tórax e desmaiara. Ao se levantar, olhou para o próprio corpo e constatou as manchas por onde a bala teria entrado, de um lado, e saído, do outro. Chegara em casa somente tarde da noite e vira luz no quarto de seu irmão, e encontrara uma vela acesa. Sobre a cama, vira seu irmão agonizando, com o ferimento sangrando. Finalmente, em sonho, seu irmão lhe dissera exatamente o que acontecera, onde, quando, como o motivo gerador da disputa. Resoluto, avisara à mãe de que iria à Paris para desafiar para um duelo o homem que covardemente assassinara o irmão, porque era conhecedor de que Luís jamais havia tocado em arma alguma até o momento do duelo.

A segurança de Luciano de Franchi é inabalável e é reforçada pelo fato de que, na noite antes do duelo, não recebe a visita de nenhum parente morto. Certo de sua vitória, ele parte exatamente ao mesmo local na floresta onde seu irmão fora morto, sem que para isso ninguém precise lhe indicar o caminho. Ali, ele usa a mesma pistola usada pelo irmão e, finalmente, dá cabo do conquistador que matara Luís uma semana antes, para então cair desalentado e dizer a Alexandre que o irmão finalmente havia sido vingado.

Novamente, um final seco é apresentado ao leitor, mas neste caso, não há pontas soltas na história. Mais do que o final se ajustar ao enredo, o que interessa, particularmente, é o quadro que o narrador descreve, e as oposições entre a França e a Córsega. O questionamento é velado, mas está ali: será que os impetuosos corsos, com sua arraigada cultura da clara e honesta vendetta, eram tão repreensíveis assim, quando em Paris o escândalo, a difamação, a intriga e a covardia eram capazes de dar cabo da vida de um jovem promissor que nada fizera para merecer morrer? No apagar dos lampiões, em pleno desenvolvimento do século XIX, o tão chamado Século das Luzes, Paris é que aparece, nesta história, maculada e culpada.

Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Dumas,_pai


segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Volume 36 - O corsário negro - Emílio Salgari

As aventuras marítimas são bastante recorrentes na coleção Clássicos da Literatura Juvenil, e não é para menos: elas foram responsáveis pelo enriquecimento e pela expansão de muitas nações, bem como foram a ruína de muitos povos. Graças a elas, nações inteiras foram escravizadas, tribos dizimadas, homens foram abandonados em ilhas desertas, e muitos alimentos exóticos, animais e jóias, dentre incontáveis bens, foram comercializadas através das águas salgadas dos sete mares.

Neste espírito é que o leitor encontra a narrativa d'O corsário negro (originalmente publicado em 1898), do escritor italiano Emílio Salgari -- que, as propósito, já esteve presente na coleção com o nono volume, Capitão Tormenta. Historicamente situado no século XVII, quando Luis XIV da França e Felipe IV de Espanha negociavam a paz lá para os idos de 1760, na Guerra de Flandres, o livro apresenta a história de vingança do gentil-homem Emílio de Roccanera, senhor de Valpenta e de Ventimiglia, cujos irmãos haviam sido assassinados por ato de traição e vingança de um certo conde Wan Guld, governador de Maracaibo. Atualmente, Maracaibo é a segunda maior cidade da Venezuela, mas naquela época de ouro da pirataria, era um importante posto comercial e de colonização, justamente por estar entre o Golfo do México e as ilhas caribenhas. Esse é o espaço em que o Corsário Negro, que faz jus ao apelido por causa de sua indumentária toda negra, seu porte de nobre e sua triste e solitária figura, luta para obter justiça.

O livro divide-se, basicamente, em três grandes momentos. No primeiro momento, o corsário negro, com a ajuda de dois marinheiros e de um negro da ilha, entra em Maracaibo sorrateiramente para resgatar da forca o último dos três valentes irmãos mortos por Wan Guld. É nesta parte que, baseando-se em princípios de cavalheirismo e honra, o gentil-homem poupa a vida de um soldado catalão e de um cavalheiro espanhol. O segundo momento é o da fuga do navio Fulgor junto com o corpo do corsário vermelho, resgatado em meio a muitas aventuras e uma explosão de proporções assustadoras, e o de confronto com um navio espanhol que vinha em direção a Maracaibo, onde o corsário e sua tripulação encontram trancados na cabine uma jovem duquesa flamenga com a criadagem próxima. Dá-se, como é de se esperar, que ambos se vêem apaixonados, mas o capitão, tendo jurado que vingaria os 3 irmãos somente se matasse Wan Guld e toda a sua família, não permanece com ela. Mal pousa na famigerada ilha Tortuga, onde bucaneiros e flibusteiros concentram os resultados de seus grandiosos saques marítimos, une-se à frota de dois outros grandes capitães e parte de novo para Maracaibo -- desta vez, segundo ele, para invadir a ilha do governador e dar cabo de sua vida. O terceiro grande conjunto de aventuras gira em torno da caça ao conde Wan Guld, que se vira contra o caçador corsário, pois que após atravessar uma floresta virgem e se deparar com onças, suçuaranas, jaguatiricas, jacarés, lodaçais, pântanos, espinheiros e antropófagos (para não mencionar fome, sede, dor, sono e exaustão), a corajosa e reduzida equipe, agora orientada justamente pelo catalão que havia sido poupado na primeira parte, se vê aprisionada pelo governador, e só escapa à morte porque o capitão do navio que os captura não é outro senão o do nobre Sr. de Lerma, o gentil-homem a quem o corsário havia também poupado a vida.

Uma vez que se trata de uma adaptação (aqui, realizada por Graciela Karman), não posso afirmar que este seja de fato o desfecho da obra, mas aqui o narrador nos explica que a duquesa é, na verdade, filha de Wan Guld, que vinha sob disfarce para Maracaibo quando o navio foi atacado pelo Fulgor e conquistado. Estando Wan Guld e seus familiares jurados de morte, o corsário, que a ama, não a mata, mas manda que abasteçam um escaler (uma embarcação sólida, pequena, com remos e bancos) com mantimentos para uma semana, e a larga em alto mar, num ponto indefinido entre a ilha Tortuga e o estreito de Gibraltar.

Mas o que havia feito Wan Guld de tão terrível? Na guerra entre França e Espanha pela disputa pelo território de Flandres, o então comandante das tropas francesas Wan Guld havia vendido a alto preço sua lealdade aos espanhóis, infiltrando-os durante a noite no forte francês. Durante a traição perpetrada, ele mata o primogênito dos irmãos Roccanera como forma de silenciar a traição, mas o faz com atraso, porque todos do grupo tinham visto e tiveram tempo de fugir, dentre os quais estavam os outros três irmãos. Não bastasse esta traição, pela qual angariou seu cargo de governador em Maracaibo, mandou enforcar o Corsário Verde e o Corsário Vermelho, irmãos de Emílio, como forma de se vingar de todos os Roccanera e de silenciá-los com relação à sua traição.

Nesse sentido, o leitor e a leitora podem experimentar, ao final da narrativa, um certo desalento, já que não vêem Wan Guld pagando pelos seus atos. Tampouco o final da jovem duquesa Honorata Wan Guld é decisivo: terá ela morrido em meio às incertas vagas? Terá sido resgatada por outro navio? Terá se reencontrado com seu pai ou, um dia, quem sabe, com o amado Corsário Negro, que tão amargamente havia chorado a decisão de abandoná-la à própria sorte? Estas e outras aventuras são contadas nos romances subsequentes, O filho do corsário vermelho, A rainha do Caribe e, é claro, A filha do corsário negro. Porém, estes não constam na coleção ora em apreço e, assim, fica o gostinho de quero-mais de saber o que vem depois da cena em que o capitão chora o abandono de sua amada, numa ótima e eficaz demonstração do poderoso efeito que a arte do italiano Emílio Salgari foi capaz de criar e propagar através das palavras e, pelo que vemos, dos séculos.

Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Emilio_Salgari

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Volume 35 - Rei Artur e seus cavaleiros

"O período que se estende do século XII ao fim da Idade Média foi por excelência a época dos romances de cavalaria. Neste gênero de literatura [...] exprimiam-se os mais profundos ideais da alma popular: o ideal de lealdade à sua fé e às suas convicções, da coragem, que tudo suplanta porque tem raiz no espírito, que é invencível; o ideal da luta contra as forças cegas da natureza, e sobretudo contra o mal -- o anseio de explorar reinos desconhecidos, anexando sempre novos territórios ao domínio humano".


Assim tem início a introdução a uma das mais famosas narrativas do mundo ocidental, contadas, recontadas e reapresentadas nas mais diversas roupagens: a do rei Artur e seus cavaleiros da Távola Redonda.


O trigésimo-quinto volume da coleção Clássicos da Literatura Juvenil, Rei Artur e seus cavaleiros (notem, leitores, que assim como nos outros volumes aqui apresentados, a publicação mantém a grafia portuguesa dos nomes estrangeiros), é senão uma adaptação de muitas dessas histórias que se aproximaram e se ligaram através dos séculos, e o texto no qual ela mais se baseia é a do escritor Sir Thomas Malory, Morte d'Arthur. Este foi o primeiro livro publicado em inglês e é conhecido como a maior epopeia inglesa, publicado no século XV.

A estrutura do livro é clássicas das histórias de cavalaria: apresenta-se o nascimento de Artur, sua criação em lugar longe do castelo, por gentil-homem que não sabia sua real origem, sua façanha de retirar Excalibur da bigorna, sua coroação e casamento com Guinevera, e todo o longo período de seu reinado, até que morre em campo de batalha, destruído pelo malévolo Mordred, seu sobrinho (e não seu filho incestuoso, como aparece em outras versões). A narrativa principal, porém, é entremeada das histórias de outros heróis da cavalaria, como Dom Lancelote do Lago, Tristão, e Galaad, além de heróis outros que aparecem em menor escala, embora seus feitos sejam igualmente reconhecidos e nobres.

Particularmente grande é a narrativa de Tristão, pois que engloba do nascimento deste até sua chegada à confraria da Távola Redonda, na qual reuniam-se os 150 cavaleiros do Rei Artur, e liga-se à história principal (ou eixo central, como costumamos chamar na literatura) porque Tristão é conhecido como um dos melhores cavaleiros do rei.

Como o leitor e a leitora podem esperar, trata-se, aqui, de narrativas grandiloquentes, com o emprego respeitoso e antigo do "vós" e suas conjugações, e apresentação de uma Inglaterra nebulosa, ainda em formação, no século V, quando os romanos já tinham deixado as terras britânicas e os anglo-saxões investiam furiosamente contra elas. Misturam-se, aqui, a cultura herdada de Roma, a magia e o fantasioso advindos da cultura celta, a corte e a galanteria que conhecemos tão bem na literatura francesa, e os mais altos valores de nobreza, coragem, lealdade e fé cristã, numa época em que se lutava em nome de uma dama e morria-se por ela ou pela fé, na ponta de uma lança ou no fio de uma espada (mata-se, explode-se e se morre ainda hoje pela fé, mas não me parece tão nobre, elegante e justo quanto o era quando acontecia pela luta de um contra um).

Falo, é claro, de uma narrativa romancizada e, tal como coloca a escritora Pepita de Leão, que adaptou esta obra, ela exprime muito mais a lenda criada no fogo lento dos séculos, no caldeirão de um povo repleto de histórias de magia e cavalaria, do que a real história. Podemos, enquanto leitores que somos, captar dali o sentimento, o estilo, o quadro geral da formação histórica da Grã-Bretanha, mas não é possível afirmar que seja a história de um rei, porque nem mesmo existe acordo sobre um Rei Artur ter de fato existido. Do mesmo modo, não se afirma que tenha existido Avalon, ou que José de Arimateia tenha ido parar na Inglaterra, como conta a narrativa de Galaad e de sua busca pelo Santo Graal -- aliás, uma das narrativas mais belas desta adaptação.

A falta de provas cabais não impediu que o ciclo arturiano ganhasse força, e desse origem a outras novelas de cavalaria, em outros países, das quais Amadis de Gaula, em Portugal, e Canções de Rolando, na França, são exemplos. Tampouco deixou de ganhar adeptos no século XIX, e muito menos que as histórias fossem recontadas no século XX pela literatura e pelo cinema. No campo das letras, os dois grandes representantes das lendas arturianas foram, indubitavelmente, Marion Zimmer Bradley, que num estilo muito romanesco recuperou as lendas a partir da perspectiva feminina e celta, em As Brumas de Avalon (e onde Morgana não era má como aparece nas correntes anteriores), e Bernard Cornwell, que baseou sua recriação em dados históricos e também recuperou a religião druida muito mais fortemente do que se apresentava até o século XIX, quando principalmente os franceses tinham continuado a tradição cristã nas lendas arturianas. No cinema e na TV, já não se pode contar o número de adaptações das lendas arturianas, embora mereça destaque a versão cinematográfica de 2004 justamente porque perdeu o brilho e a magia da cavalaria e porque, rendendo-se à indústria cultural, nada foi além de uma história que poderia ter sido sobre qualquer outro general, e não sobre um rei de nobreza inigualável como o é Artur na literatura.

Nesse sentido é que obras como esta adaptação, apresentada na coleção, são peças preciosas porque recuperam o sentido original da lenda. Elas não deixam, é claro, de fazer o serviço ideológico a favor de uma Inglaterra que já não existe há pelo menos mil anos (Jonathan Swift bem explorou este aspecto, como vimos em Viagens de Gulliver), e ainda servem de mote à indústria de entretenimento, mas jamais deixarão, Artur e seus cavaleiros, de apelar aos corações em favor de uma humanidade e de valores de respeito e leal amizade, tal como o foram até o fim do reinado.


Fonte de informações sobre a lenda e a história: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rei_Artur

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Volume 34 - As mil e uma noites


Dentre os livros orientais conhecidos mundialmente, As mil e uma noites é provavelmente o mais famoso e o mais antigo de todos. Há quem diga, por exemplo, que ele é o livro mais lido depois da Bíblia. Compilado pelo francês Antoine Galland no início do século XVII (refiro-me ao período de 1700 a 1717), o conjunto de histórias orientais baseou-se em escritos árabes encontrados na Pérsia e no Egito, e originalmente não tinha esse título.
Todas as diversas fontes datam do século IX, especificamente a partir do ano 879, quando o califa (leia-se representante de Maomé na Terra) Haroun Al-Rachid governava em Bagdá. Os contos parecem falar de mil e uma noites de histórias, mas somente no século X passa-se a consolidar a ideia de uma princesa chamada Xerazade e de sua sedução através das histórias que contava. Muitas são as versões e as origens, e sabemos hoje que as histórias não são somente árabes, mas indianas, persas e até gregas. No quadro de contos populares, não faltam histórias fantásticas, com magos, gênios, reis, escravos, pescadores, mercadores, lindas mulheres e os enredos mais fascinantes contados pela esposa do rei Xariar. Obviamente, por questão de faixa etária, os contos de caráter erótico foram desconsiderados na edição publicada na coleção Clássicos da Literatura Juvenil.

Conta a história que Xariar, irmão de Xazamã, foi traído pela primeira esposa e, por isso, decidiu casar-se todos os dias com uma virgem, para na manhã seguinte às núpcias mandar degolá-la e, assim, não correr o risco de ser novamente traído. Diariamente, o grão-vizir degolava a recém-casada, até que quase já não havia virgens no reino da Pérsia. Foi quando a filha do próprio vizir, chamada Xerazade, resolveu parar com as mortes de mulheres e ofereceu-se para casar-se com Xariar, à revelia do pai. A estratégia de Xerazade era chamar a irmã ao quarto nupcial um pouco antes do amanhecer e então contar-lhe uma de suas histórias como “despedida”, mas quando o primeiro raiar de sol surgia no horizonte, a história estava num ponto tão interessante, que Xariar, curioso para saber o desfecho, poupou a vida de Xerazade. Nascia, assim, a primeira novela folhetinesca que conhecemos, pois a moça sempre interrompia a narrativa em seu ponto alto, e ia entrelaçando os enredos de forma tão sutil, que a história nunca acabava. Ao todo, conta-se que foram 88 histórias narradas durante mil e uma noites, e que nesse período não só Xerazade deu um herdeiro a Xariar, mas o califa acabou por arrepender-se de sua ira e por reconhecer que nem todas as mulheres eram traidoras. Xerazade, então, tornou-se sultana e teve com Xariar um total de 3 filhos.

No volume apresentado nesta coleção, o leitor e a leitora encontram somente algumas das histórias e, justamente por ser um recorte do livro compilado através dos séculos, as histórias não são contadas em “dias”, mas em núcleos de histórias. Assim, são encontradas histórias como a do pescador e do vaso com o gênio lacrado há séculos lá dentro, ou as famosas histórias de Aladim e a lâmpada maravilhosa, e de Simbá, o marinheiro. A linguagem é bastante acessível, e todas as paisagens, os ambientes e as roupas das personagens são ricamente descritas, de forma a pintar um quadro colorido e repleto de riquezas e da paisagem oriental das areias do deserto, das montanhas escarpadas, das ilhas nos mares e até mesmo de reinos mais distantes, como a China.

Vale a pena, neste livro, dar especial atenção às ilustrações, que são muito singelas e ao mesmo tempo muito detalhadas, e retratam fadas, gênios, reis, e heróis e heroínas. Além disso, imperdível é a história do Príncipe Caramalzamã e da Princesa Badura. Ele vivia na Pérsia, ela na China; ele não queria casar-se, ela tampouco. Ambos tão distantes assim, jamais haviam se conhecido, mas passam por situação semelhante de serem trancados em quartos e torres até que “recuperem o juízo” e concordem em se casar para perpetuar a dinastia. Mas eis que, durante o sono, um diabo e uma fada se encontram, e apresentam um ao outro durante o sono, e depois os reconduzem aos seus respectivos leitos. A aventura que se segue é a de fazer com que um encontre o outro e possam finalmente se casar. Esta é, aliás, a história que ilustra a capa deste volume da coleção.

Como eu comentei, muitas das histórias mais picantes ou mais complexas foram deixadas de fora, mas elas podem ser encontradas em qualquer lugar – uma livraria, uma bilbioteca, na rede virtual --, e então lidas em sua completude. Nesse caso, pode-se optar tanto pelas traduções feitas ao longo de décadas pelos europeus e então trazida ao Brasil, ou pela recente tradução brasileira feita diretamente com base nos pergaminhos árabes, feita pelo professor e tradutor Mamede Mustafá Jarouche. Só não vale deixar de ler, pois essas narrativas exemplares são a base de uma parte significativa da nossa história e da nossa cultura e, como tal, nos constrói, ainda que você, leitor ou leitora, não entenda muito bem como ela o faz. Esse já é um outro tema – um aprendizado para a vida toda, numa trilha que vale a pena ser percorrida.

Fonte de informações sobre a história:
http://pt.wikipedia.org/wiki/As_mil_e_uma_noites